quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Revolução e Constituição

O momento histórico que viu nascer o constitucionalismo, ou seja, as teorias (filosóficas, políticas e jurídicas) sobre o significado e o alcance das constituições escritas, foi tempo de grandes mudanças, de revoluções no sentido próprio da palavra, pois provocaram transformações na estrutura de toda a sociedade, inclusive no campo do conhecimento humano.

A mais notável de todas foi a francesa, chamada de "A Grande Revolução" (1789). Mas não foi a primeira revolução desse período que, nessa altura, já se poderia chamar de Modernidade. Uma década antes, os americanos já haviam feito a sua (1776), quando venceram a guerra pela independência contra a Inglaterra e a guerra civil, que reafirmou o compromisso do povo americano com os valores liberais.

Na Europa,esse período é marcado pelo fim do chamado "Antigo Regime". As nações européias eram governadas por déspotas, príncipes que acreditavam personificar o poder nacional, eram chamados de monarcas absolutos porque não conheciam limites à sua autoridade. Todos os regimes absolutistas começam a ruir nesse final do século XVIII. Na França, que era o grande centro iluminista daquele período, a queda foi grande, abrupta e violenta.

A nobreza francesa, como todas as outras, durante séculos acreditou - e fez acreditar - que havia sido agraciada com a ordem divina para apenas governar, sem trabalhar, isenta de qualquer tipo de tributo para a manutenção da Nação. Essa nobreza, que dias antes aproveitava as delícias do ócio nos jardins do imenso Palácio de Versailles, quando acordou do sonho, deu com o povo francês, inflamado pela liderança letrada da burguesia, a gritar nas ruas as palavras mágicas, liberdade, igualdade, fraternidade. Quem não conseguiu fugir para as monarquias vizinhas (Inglaterra, Áustria, Espanha...), perdeu tudo. Os bens foram confiscados para que, leiloados, revertessem em benefício do Tesouro nacional - o regime de Luis XVI estava falido e agora deposto.

No primeiro momento, isto é, logo após a queda da Bastilha em 14 de julho de 1789, a família real foi preservada e os nobres apanhados pelos revolucionários já reunidos em Assembléia Nacional foram simplesmente aprisionados. Vejamos a descrição destes fatos na versão da Enciclopédia Koogan-Houaiss:
"O povo de Paris rebelou-se em 14 de julho e atacou a Bastilha, uma fortaleza-prisão, na tentativa de obter armas e libertar vários prisioneiros políticos. Na luta foi morto o diretor da prisão. O rei foi obrigado a chamar novamente Necker para o cargo de primeiro-ministro. Mas a multidão em Paris, incitada pelos líderes revolucionários, começou a desempenhar um papel cada vez mais importante na revolução. Em outubro, uma multidão proveniente de Paris e formada principalmente por mulheres invadiu o palácio real de Versalhes. A família real teve de pedir proteção à Guarda Nacional, uma força armada organizada pela assembléia para manter a ordem. Ao mesmo tempo, os camponeses, em várias partes da França, começaram a revoltar-se contra os senhores feudais. Os nobres franceses, dentre eles o irmão do rei, começaram a fugir do país.

Durante os dois anos seguintes, a Assembléia Nacional aprovou leis que eliminaram muitos abusos do antigo sistema feudal. Os nobres perderam a maioria de seus direitos, privilégios e títulos. Inicialmente foi decidido que o governo deveria indenizá-los por suas perdas, porém mais tarde essa medida foi abolida.

A assembléia aprovou um documento famoso, a Declaração dos Direitos do Homem, em 26 de agosto de 1789. A Assembléia Nacional redigiu então uma constituição que transformou a França em uma monarquia constitucional, com apenas um corpo legislativo. Segundo a constituição, o rei somente poderia declarar guerra ou assinar tratados de paz com o consentimento do legislativo. A França foi dividida em departamentos e estes em distritos e cantões. Os eleitores tinham de ser contribuintes ou "cidadãos ativos". As propriedades da Igreja e dos nobres que haviam fugido do país foram tomadas pelo governo. Foram emitidas letras contra essas propriedades para a obtenção de fundos públicos. O clero teve de prestar juramento à nova constituição. Alguns de seus membros prestaram esse juramento, mas muitos se recusaram a fazê-lo. A Assembléia Nacional decidiu que nenhum de seus membros poderia ser eleito para a nova câmara, a Assembléia Legislativa, e dissolveu-se em 30 de setembro de 1791 para dar lugar ao novo governo. O rei na verdade não aceitou os atos da assembléia, embora aparentasse tê-lo feito. Em junho de 1791, tentou fugir da França com sua família, mas foi reconhecido em Varennes e trazido de volta a Paris. Os líderes serviram-se dessa tentativa para despertar a desconfiança do povo, que acreditava que Luís conspirava contra a França juntamente com os nobres que haviam deixado o país e os governos de outras nações. Vários países tinham ainda reis que governavam segundo a doutrina do direito divino. Esses reis desconfiavam do movimento revolucionário francês, pois temiam que o mesmo pudesse estender-se aos seus próprios países.

A nova assembléia reuniu-se em 1.° de outubro de 1791. Contava com 745 membros, eleitos pelos "cidadãos ativos", e representava sobretudo a classe média. Clubes revolucionários radicais, a maioria dos quais formados em 1789, logo se tornaram uma força importante no novo governo. Robespierre liderava os clubes jacobinos e Georges Jacques Danton, Jean Paul Marat e Camille Desmoulins eram membros dos franciscanos. Esses homens dominavam um grupo na assembléia, chamado Montanha, pois suas cadeiras ficavam situadas na parte mais alta do recinto, à esquerda do orador. Perto deles sentava-se um outro grupo importante, chamado Gironda, pois seus lideres eram provenientes de um distrito do mesmo nome. Os membros da Planície sentavam-se na parte baixa e central do salão. Os membros mais conservadores ficavam à direita do orador. Muitos historiadores acreditam que os termos direita e esquerda aplicados aos partidos políticos tiveram a sua origem na Assembléia Legislativa francesa. No decorrer da revolução, os jacobinos foram aos poucos tornando-se mais poderosos.
A Convenção
O partido radical assumiu o controle da assembléia e pediu a eleição de uma Convenção Nacional para redigir uma nova constituição, uma vez que a monarquia constitucional de 1791 chegara ao fim com o afastamento do rei. A Convenção reuniu-se em 20 de setembro de 1792. Eleita pelo voto de todos os cidadãos masculinos, contava com 749 membros. Seu primeiro ato foi proclamar a república na França. O perigo de uma invasão foi enfrentado com o fortalecimento do exército, que continuou a conquistar vitórias. Os dois grupos que haviam sido os mais fortes na Assembléia Legislativa, a Gironda e a Montanha, formavam agora os partidos conservador e radical na Convenção. Inicialmente os girondinos contavam com a maioria. Os radicais, apoiados pelo governo de Paris, queriam conduzir a revolução além do limite desejado pela classe média superior. Luís XVI foi levado a julgamento por haver traído o seu país. Muitos girondinos desejavam poupar sua vida, mas ele foi declarado culpado e executado. Em abril de 1793, a Convenção nomeou um Comitê de Segurança Pública para cuidar da segurança interna da França. Os radicais foram pouco a pouco ganhando poder até que, em junho de 1793, expulsaram os líderes girondinos e os prenderam.

O Terror

Com a subida ao poder do Comitê de Segurança, a revolução entrou na sua mais radical etapa. O comitê passou a dominar a França. Dentre os seus líderes estavam Danton, Robespierre, Lazare Nicolas Marguerite Carnot e Jean Marie Collot d'Herbois. Centenas e mais centenas de pessoas foram guilhotinadas por serem contra-revolucionárias ou terem despertado a desconfiança de algum membro do comitê. Paris acostumou-se ao ruído das carroças que rodavam pelas ruas levando pessoas para a guilhotina. Comissários foram enviados às províncias, onde passaram a praticar o terror em colaboração com os clubes jacobinos locais. Os aristocratas, inclusive Maria Antonieta, rainha da França, foram executados primeiro. Depois foi a vez dos moderados, dentre os quais estavam os girondinos. Finalmente os radicais começaram a lutar entre si pelo poder. Robespierre conseguiu obter a condenação e execução de Danton e outros antigos líderes. Mais tarde o povo se voltou contra Robespierre e também ele acabou morrendo na guilhotina. Os revolucionários não praticaram o Terror como um fim em si mesmo, mas como um método de controle político. A França estava seriamente ameaçada por inimigos, tanto dentro como fora do país. Robespierre e os outros líderes acreditavam que nem a França nem a revolução estariam seguras enquanto esses inimigos vivessem. Até mesmo a morte de Robespierre foi resultado de uma luta política. Os homens que o condenaram desejavam acabar com o seu poder e não com o Terror.
O Fim da Revolução.
A França estava, entrementes, conquistando vitórias nos campos de batalha. Os exércitos franceses tinham não só repelido os invasores como também levado a revolução para solo estrangeiro. Um oficial do exército, Napoleão Bonaparte, estava adquirindo fama como gênio militar. Um setor da Alta Burguesia passou a dominar a Convenção e a revolução chegou ao fim. O poder da Comuna de Paris e dos clubes jacobinos foi abolido. O povo de Paris revoltou-se, mas os levantes foram debelados. A Convenção elaborou uma constituição (1795) estabelecendo um novo governo. O legislativo passou a ter duas câmaras e o poder executivo foi entregue a uma junta de cinco diretores. O povo revoltou-se contra a medida tomada pela Convenção, segundo a qual 2/3 dos novos representantes deveriam ser escolhidos entre os membros da mesma Convenção. Mas Napoleão reprimiu o tumulto, a Convenção foi dissolvida e o novo governo se instalou no poder. De 1795 a
1799 o fervor revolucionário decresceu. A situação financeira da França era ruim e o país continuava ameaçado internamente pelo povo insatisfeito e externamente pelas nações inimigas. Alguns acreditavam que era necessário um governo forte e centralizado. Napoleão, que estava no Egito, regressou inesperadamente e tornou-se governante absoluto da França. "
Há muitas interpretações sobre o significado histórico da Revolução Francesa, entre estas a que viu nela um significado essencialmente burguês, ou seja, que a revolução aboliu os privilégios feudais e derrubou o regime absolutista foi feita pelo povo e em seu nome, ou melhor, em nome dos indivíduos doravante considerados iguais e livres por natureza, tudo bem, mas o efeito prático dessa transformação foi o de levar ao poder a burguesia. A definição da propriedade privada (sagrada e inviolável) como valor central da declaração de direitos do homem e a restrição do sufrágio aos proprietários deixava isso muito evidente. Vale lembrar aqui o que disse, a propósito, Michel Miaille, para quem:

"A noção de sujeito de direito é bem pois uma noção histórica, com todas as consequências que esta afirmação acarreta. Ouçam-nos bem: não se trata de lamentar ou de recusar que os indivíduos sejam sujeitos de direito. Em um dado sentido esta aquisição é portadora de uma libertação já que postula a destruição das relações tradicionais bem constrangentes(...). Nessa medida, a burguesia revela-se revolucionária, mas nessa medida apenas. É preciso compreender que, ao fazer isso, o novo sistema jurídico não cria ex nihilo uma pessoa nova. Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o capitalismo. É preciso, pois, recusar todo ponto de vista idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que é suposta representar (a liberdade real dos indivíduos). É preciso tomá-la por aquilo que ela é: uma noção histórica [1]."

Em outro lugar escrevi sobre essa grande contradição que é a noção de sujeito de direito. Conceito que se afirma nesse contexto de transformações radicais. O sujeito humano, a pessoa, o indivíduo humano ganha o status de fundamento e finalidade da organização social, do próprio Estado. O homem agora - e pela primeira vez na história - passa a ser detentor de novos direitos naturais e universais, ou seja, direitos que decorrem da própria natureza e razão humanas. Esse reconhecimento, não mais apenas filosófico, mas agora político, ainda que formalmente, é o que tornaria possível a constituição da sociedade, resultante do metafórico pacto estabelecido por tais homens livres e iguais, o contrato social. Acrescente-se, livres para participar do mercado, livres para contratar - fórmula jurídica adotada para a conversão das relações sociais - livres para negociar seus bens, mesmo quando o único bem disponível seja a força de trabalho. Já se pode notar a desigualdade material que resultaria desse arranjo. A isso chamamos, com a ajuda de Karl Marx, o conflito de classes. É que a igualdade, outro pilar da declaração de direitos, será entendida não no sentido material, igualdade econômica, mas no sentido formal de igualdade perante a lei. A lei do Estado, aprovada pelo Parlamento será a fonte do Direito por excelência daí em diante e sua expressão técnica, os códigos, o veículo mais utilizado para sua manifestação. Vale ressaltar, serão os códigos, encabeçados pelo Código Civil francês (Code Napoleon), não as constituições, os documentos jurídicos mais importantes no sentido prático para estabelecer a nova ordem social. As constituições liberais escritas dessa fase inicial da modernidade serão até chamadas por Ferdinand Lassalle, na primeira metade do século XIX, de meras "folhas de papel", tal a sua disponibilidade por parte dos daqueles por ele chamados "fatores reais de poder".
Segundo o filósofo espanhol Elías Díaz, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, embora pretenda estabelecer no plano jurídico um catálogo de princípios e regras básicas para toda a sociedade, deve, pois, ser vista com esse elemento ideológico que a caracteriza, isto é, como uma declaração de direitos voltada essencialmente para o homem burguês. Vejamos:

“A Declaração de direitos de 1789 expressa com bastante clareza em nível superestrutural o sentido ideológico do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII, o qual, pode-se dizer, representa em suas linhas gerais o modelo histórico do direito natural revolucionário, em contraposição ao outro modelo, mais freqüente, do direito natural conservador. Naquele contexto, com efeito, a ‘ordem natural’ coincide nos planos econômico e político com a ordem liberal, que é, sem dúvida, revolucionário frente ao absolutismo do antigo regime; o natural é ali a liberdade, aparecendo conseqüentemente os direitos naturais como paralelas declarações de liberdades.

Que o a-historicismo racionalista da Declaração defina como direitos naturais ou como direitos do homem (a terminologia é dual neste sentido e expressa aliás a ambigüidade da transformação iminente), o que na verdade são direitos da burguesia (ou melhor, direitos para a burguesia) de modo algum faz com que a Declaração perca
seu claro sentido progressista e revolucionário.

Convém insistir sempre nisto: a burguesia liberal é indubitavelmente revolucionária e
progressista frente à monarquia absoluta e frente aos estamentos privilegiados do antigo regime. Pois bem, afirmado isso, não é menos certo que a coincidência ideológica entre ordem natural e ordem burguesa, quer dizer, a sacralização dos direitos da burguesia (especialmente o direito de propriedade privada) desde o direito natural, acabará por dar a esses direitos ( e cada vez mais ao longo dos séculos XIX e XX) um sentido e uma interpretação liberal, sim, mas irremediavelmente conservadora."[2]

As revoluções e as subsequentes constituições desse período inauguram a modernidade política, mas estiveram longe de esgotar a luta pela garantia dos direitos fundamentais. Essa história ainda continua.

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[1] MIAILLE, Michel, Introdução Crítica ao Direito, Editorial Estampa, 2ª edição, Lisboa, 1989, pp. 120 e 121.
[2] DÍAZ, Elías. Legalidad-Legitimidad en el Socialismo Democrático. Madrid: Civitas, pp. 74-75. Tradução livre.)

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