terça-feira, 30 de setembro de 2008

Direitos fundamentais, o que são?

A Constituição de 1988 inovou ao posicionar o título dos Direitos Fundamentais antes da organização do Estado. Foi de propósito. Os Constituintes quiseram marcar, com esse gesto simbólico, a prevalência desses direitos sobre a força pública ou privada. Foi um sinal para os intérpretes, os juristas especialmente, que começaram a produzir a nova doutrina constitucional do Brasil. Logo logo essa doutrina constitucional chegaria às sentenças dos juízes, para depois freqüentar a bancada do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição de 88 foi bastante pródiga na criação de direitos fundamentais, de todas as gerações e espécies, individuais, difusos e coletivos. É bem verdade, pois, que, do ponto de vista de sua funcionalidade, aquilo que chamamos de direito se apresenta, no catálogo constitucional, com formas tão distintas quanto: poderes, imunidades, liberdades, competências, pretensões, interesses... A forma que o direito assume é diferente quando se compara o direito de manifestação com a função social da propriedade, por exemplo. Direitos de primeira geração, as liberdades clássicas, têm funcionamento muito diverso do modo de realização dos direitos de segunda e de terceira. Num certo sentido (funcional ou analítico) talvez fosse mais correto chamar de situações jurídicas essa ampla gama de posições a que chamamos direitos. Mas essa é uma questão teórica que examinaremos mais adiante.

Outra conseqüência - essa de ordem prática - dessa concessão em massa de direitos foi a inevitável situação de conflitos entre eles, ou seja, não se trata mais do simples conflito de interesses que se resolve pelo reconhecimento do direito de alguém e do não-reconhecimento do direito do outro. Quando o choque se dá entre direitos fundamentais, a intimidade e a informação, por exemplo, não se pode reconhecer um deles e não se reconhecer o outro. A solução do conflito passa a ser menos a simples aplicação da lei e muito mais um jogo argumentativo que se trava no campo da eqüidade.

Os constitucionalistas chamam esse procedimento de "poderação de valores", em que se pergunta até que ponto a realização de um dos direitos simplesmente não aniquila o outro. O resultado final dessa operação não é nunca lógico, pois passa a ter influência sobre a "decisão ponderada" do julgador uma série de fatores que são estranhos ao processo judicial, esse encadeamento lógico-formal do conflito. A ponderação exige levar-se em conta o contexto social, o sentido das conseqüências da decisão, o peso das partes em conflito, para saber quem pode suportar um ônus restritivo maior à sua posição jurídica, enfim, passa a valer o que os ingleses chamam de common sense. No julgamento das "celulas-tronco embrionárias", o Relator citou versos de música popular, revista semanal, matéria jornalística. Tudo isso agora está nos autos e constará do acórdão do Supremo Tribunal Federal. Mais uma questão para examinarmos com mais cuidado.

Outra questão fundamental: de quem são os direitos? Será que existe clareza quanto à titularidade dos direitos fundamentais? Por exemplo: de quem é o direito à negociação coletiva? Quem tem direito à saúde? O direito à propriedade é de todos? (O que seria essa sua função social?) Pode a intimidade de alguém protegê-lo da prática de atos ilícitos?

As perguntas se acumulam nesse terreno, mas percebam que a questão da titularidade de direitos não pode mais ser respondida abstratamente, como pensavam os constitucionalistas clássicos. Dizer que todos os indivíduos são titulares de direitos fundamentais não quer dizer que todos somos titulares dos mesmos direitos, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, no convívio social, que é o solo em que os direitos se realizam ou são violados, existe uma rede intrincada de relações entre pessoas e grupos; nessa rede há atritos entre interesses, há conflito social, há desigualdades econômicas, tudo isso acaba interferindo na eficácia dos direitos fundamentais e, às vezes, consagra direitos a certos grupos sociais em detrimento dos direitos de outros. Isso talvez explique brevemente nossos defeitos: a impunidade, o clientelismo, o patrimonialismo, o machismo, o nepotismo, a intolerância, o racismo...

Vejam que a questão continua no terreno dos valores, seja para afirmar direitos, seja para desvendar as formas de sua violação. E, claro, em ambos os casos, estaríamos tratando de situações subjetivas, em que alguém teve o direito reconhecido ou o teve desrespeitado. O que quero ressaltar é que não se pode falar que alguém tem um direito sem examinar o contexto, as circunstâncias em que esse direito é ou não exercido pelo seu suposto dono, o titular.

O problema fica ainda um pouco mais complicado quando esse titular não existe como pessoa individual, quando ele é uma coletividade. Essa é a grande dificuldade enfrentada pela teoria constitucional decorrente da entrada em cena dos direitos sociais, dos direitos difusos e coletivos, direitos sem sujeito indivudualizável. Como atribuir-lhes titularidade, em outras palavras, quem reclamará o direito em caso de violação?

A solução da Constituição foi atribuir a tarefa de representação processual desses novos direitos ao Ministério Público e a entidades associativas e sindicais. Criou-se a ação civil pública e a ação popular, a substituição processual dos sindicatos, o mandado de segurança coletivo, de modo a garantir eficácia a esses novos direitos sem sujeito definido. E esse processo, que é em tudo novo, está em pleno desenvolvimento.

Acontece que aprendemos na Introdução ao Direito que para todo direito existe um dever que lhe é contraposto. Será que isso é mesmo verdade? Ou melhor, será que a teoria da relação jurídica pode ser ainda aplicada para explicar toda a complexidade do exercício dos direitos? De quem é o dever relacionado ao direito à moradia (art. 6º, CF)? De quem é o dever relacionado ao direito ao sufrágio universal, o próprio titular? Se eu desejo exercer a minha liberdade de expressão, alguém tem o dever de facilitar esse meu direito?

Isso nos leva a duas conclusões básicas e preliminares para enfrentarmos esse problema. Em primeiro lugar que, às vezes, os direitos são criados antes da definição de deveres respectivos, o caso da moradia é clássico, mas o mesmo se diga em relação aos outros direitos sociais (educação, seguridade, trabalho...). Todos foram enunciados em momento anterior à sua realização. É que esse tipo de direito exige mais do que o simples respeito, exige todo um complexo desenvolvimento de novas obrigações para que alguém possa exercê-lo, embora já se possa dizer que, mesmo sem essa definição de obrigações, já exista o direito, ainda que como promessa. A outra conclusão é que nem sempre o exercício de um direito exige uma prestação contrária, pode ser que o exercício do direito de alguém se manifestar livremente provoque apenas indiferença.

Fiquemos, por enquanto, nesse ponto. Mas, antes, gostaria de propor um desafio didático. Faremos isso em sala de aula. Tomemos o catálogo do art. 5º. Para cada direito ali enunciado, vamos identificar uma situação de exercício pleno e de violação desse direito. Tenho certeza de que conseguiremos reunir experiências nos dois sentidos para todo o catálogo de 78 incisos, além do caput e dos 4 parágrafos dessa parte tão especial da Constituição.

O catálogo de direitos do art. 5º

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (Vide Lei nº 9.296, de 1996)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;
XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;
XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
XXX - é garantido o direito de herança;
XXXI - a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do "de cujus";
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (Regulamento)
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos;
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;
LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;
LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;
LXXII - conceder-se-á "habeas-data":
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;
LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:
a) o registro civil de nascimento;
b) a certidão de óbito;
LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Decreto Legislativo com força de Emenda Constitucional)
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

TÍTULO I - Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A estrutura da Constituição de 1988

Muito já se disse que a Constituição é grande demais, que há matérias nela consagradas que não seriam temas de natureza ou status constitucional, que essas matérias deveriam ser reguladas em leis ordinárias... Os exemplos desse "excesso de Constituição" seriam a ordem tributária e a ordem social, mais especificamente, as regras que tratam do regime de tributos e orçamentos públicos e aquelas regras que firmam o compromisso do Estado brasileiro com o bem-estar social, assegurando direitos a seguro social, educação, cultura, desporto, ciência, comunicação, meio ambiente e protegendo a família, a criança, os idosos e os índios.

No campo tributário, encontra-se o problema mais sensível do federalismo brasileiro, a centralização de competências (poderes) da União em detrimento dos Estados. Isso faz com que qualquer reforma tributária (constitucional) tenha que sair de um novo "pacto federativo", a redefinição das forças políticas no Estado brasileiro, algo muito difícil de se alcançar, dada a nossa trajetória centralizadora

Quanto à ordem social, já se vê que as críticas têm certo sabor ideológico, mas não se sustentam, pois, entranhados no conjunto de normas que às vezes parecem específicas demais para figurar na Lei Maior, estão na verdade garantias fundamentais que complementam o clássico rol de direitos do art. 5º.

É verdade, sim, que a elevação à categoria constitucional do regime de seguridade social (saúde, previdência e assistência social), com o detalhamento regulatório que consta do texto constitucional, torna mais difícil a vida dos gestores públicos, dos agentes econômicos, do mercado financeiro porque assegurar esses direitos exige um custo administrativo e financeiro enorme para o Estado e para toda a Sociedade que paga tributos. Daí surgiram, desde os seus primeiros anos de vigência, as críticas de que a Constituição tornaria o país ingovernável.

De certo modo, os críticos tiveram êxito, pois na década de noventa, a Constituição passou por grandes reformas: o fim dos monopólios, a abertura dos mercados, a reforma do Estado, a reforma da Previdência (a pública e a dos trabalhadores da iniciativa privada), que, segundo muitos, ainda está incompleta, considerado o déficit crônico que a acompanha. Outras reformas, como a reforma política e partidária, ainda devem ocorrer, embora já se possa afirmar que, na inércia do Poder Legislativo, é o Judiciário que vem promovendo essa reforma à Common Law da Constituição.

Mas, vamos ao exame da estrutura do texto constitucional.

A Constituição brasileira está dividida em títulos (nove), que se sub-dividem em capítulos e estes em seções. Nas seções estão contidos os artigos da Constituição (250, no texto principal e 94 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, até o momento). Os artigos são a unidade normativa básica do texto constitucional e, de resto, de todas as leis no país. Os artigos podem admitir complementos e/ou exceções à norma enununciada em seu caput (cabeça). Esses complementos são os parágrafos. Os artigos e parágrafos admitem ainda outro tipo de complemento, as enumerações e discriminações que se acomodam nos incisos. Se necessário, os incisos se desdobram em alíneas (os incisos serão representados por algarismos romanos e as alíneas por letras minúsculas).

Na abertura do texto principal, encontra-se o preâmbulo da Constituição, uma profissão de fé nos valores democráticos:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil".

Os nove títulos da Constituição são os seguintes:
  • princípios fundamentais;
  • direitos e garantias fundamentais;
  • organização do Estado;
  • organização dos poderes;
  • defesa do Estado e das instituições democráticas;
  • tributação e orçamento;
  • ordem econômica e financeira;
  • ordem social;
  • disposições constitucionais gerais.
O Título primeiro não tem sub-divisão interna em capítulos e seções. Contém apenas os 4 primeiros artigos da Constituição, aqueles em que se enunciam os princípios fundamentais: os fundamentos da Repúplica, a separação e harmonia entre os poderes, os objetivos do Brasil e os princípios que o país adota nas relações internacionais.

Seguem-se os demais títulos na ordem acima referida.

O Título II consagra as diversas gerações de Direitos e Garantias Fundamentais; o Título III, trata da Organização do Estado, ou seja, da regulação da federação brasileira e da gestão pública; o Título IV, da Organização dos dos Poderes, atribuindo as competências e prerrogativas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário; o Título V trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas (estado de defesa, de sítio e de emergência) e das forças armadas; o Título VI trata da Tributação e do Orçamento; o VII, da Ordem Econômica e Financeira; o VIII, da Ordem Social; e o Título IX contém as Disposições Constitucionais Gerais.

Além do texto principal, há ainda o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - o ADCT -, que, como indica sua própria denominação, contém regras feitas para desaparecer com o tempo, servem apenas para regular a transição de um regime constitucional para o outro.

Nesta breve introdução ao direito constitucional, não iremos examinar todos os títulos constitucionais, isso será objeto de outra disciplina. Ficaremos apenas com o exame dos direitos fundamentais, o que, no entanto, nos garante examinar muito mais do que apenas os dois primeiros títulos.

Voltaremos a falar nisso.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Assembléia Nacional Constituinte

João Baptista Herkenhoff

HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

A convocação da Constituinte foi outra vitória da opinião pública. Como também o próprio funcionamento da Constituinte. Houve, em todo o Brasil um grande esforço de participação popular. Não apenas antes e durante a elaboração da Constituição Federal, como também antes e durante o processo de votação das Constituições estaduais. Por causa dessa grande participação popular, o período pré-constituinte e constituinte foi riquíssimo para o crescimento da consciência política do povo brasileiro.

Nem todas as aspirações manifestadas pelo povo encontraram eco na Assembléia Constituinte Federal e nas Assembléias Constituintes Estaduais. Por outro lado, alguns artigos que resultaram da pressão popular per­manecem “letra morta”; ou porque dependem de regulamentação; ou porque não estão sendo respeitados. Nada disso invalida, a meu ver, o esforço que foi realizado.

Constituinte Exclusiva x Constituinte Congressual

No final de 1985, travou-se um grande debate em torno da escolha entre duas espécies de Assembléia Constituinte:


a) a Assembléia Constituinte autônoma ou exclusiva;
b) a Constituinte congressual ou Congresso com poderes constituintes.


A Assembléia Constituinte autônoma seria eleita, exclusivamente, para fazer a Constituição, dissolvendo-se em seguida à promulgação desta. A Constituinte congressual seria aquela que resultaria de uma Câmara e de um Senado que se instalariam inicialmente para fazer a Constituição (como Assembléia Constituinte). Terminado esse encargo, continuariam como Câmara e Senado, cumprindo os cidadãos eleitos o mandato de deputado ou senador, em seguida ao mandato constituinte.

A principal vantagem de uma Assembléia Constituinte exclusiva seria a de possibilitar uma eleição fundada apenas na discussão de teses, princípios e compromissos ligados ao debate constituinte. Dizendo com outras palavras: numa Constituinte exclusiva, partidos e candidatos comprometem-se com idéias e programas, pois os constituintes seriam eleitos apenas para fazer uma Constituição. Na fórmula da Cons­tituinte congressual (ou Congresso constituinte), os candidatos podem prometer estradas, empregos, benefícios pessoais, pois a eleição deixa de ser de constituintes exclusivos, para ser de deputados e senadores.

A Constituinte congressual tende também a ser mais conservadora do que uma Constituinte exclusiva, por dois motivos:

1º) porque facilita a eleição dos velhos políticos, ligados às máquinas eleitorais, e desencoraja a participação de elementos descompromissados com esquemas. Na Constituinte congressual. candidatos descompro­missados com a estrutura de poder vigente concorrem, em inferioridade de condições, com os políticos que atuam na base do clientelismo eleitoral. Neste quadro as correntes conservadoras e retrógradas ficam mais fortes.
2º) porque um Congresso Constituinte, que já nasce sem liberdade de discutir a própria estrutura do Poder Legislativo, tende a reproduzir tudo o mais, ou fazer mudanças apenas superficiais e periféricas.


Um dos temas que a Assembléia Constituinte deveria discutir seria o da própria conveniência de manter, no Brasil, o sistema bicameral (Câmara dos Deputados e Senado Federal). Diversas vozes advogavam a supressão do Senado. Não nos manifestamos, neste parágrafo, sobre ser ou não uma boa idéia suprimir o Senado. Nem seria um ponto adequado para debate, neste trecho do livro. O que afirmamos, sem titubear, é que uma Assembléia Constituinte deveria ter plena liberdade de discutir a conveniência de manter ou suprimir o sistema bicameral. Os senadores, eleitos como constituintes, admitiriam a supressão do próprio mandato? É claro que não.

Fazendo ouvido surdo ao apelo dos mais amplos segmentos da sociedade civil, que queriam uma Constituinte exclusiva, a maioria parlamentar seguiu a orientação do Governo e optou pelo Congresso constituinte. Essa maioria parlamentar não acolheu nem mesmo o parecer do deputado Flávio Bierrenbach, que propôs, se entregasse ao próprio povo a decisão entre as duas formas possíveis de Assembléia Constituinte, através de um plebiscito que seria realizado em 15 de março de 1986. Em vez de apoiar a democrática proposta de plebiscito, as forças do Governo destituíram Flávio Bierrenbach da função de relator da emenda da Constituinte e aprovaram, contra a opinião pública nacional, a convocação da Assembléia Constituinte sob a modalidade de Constituinte congressual.

O aspecto mais chocante da decisão governamental que optou pela Constituinte congressual foi, ao mesmo tempo, uma das razões mais fortes para que o Governo tomasse essa decisão. Consistiu no fato de que a Constituinte congressual teria a participação, como constituintes, dos 23 senadores eleitos em 1982. Esses senadores, de direito, não poderiam ser membros natos da Constituinte, pois ninguém pode ser constituinte sem mandato específico. A presença dos senadores eleitos em 1982 no Congresso Constituin­te foi impugnada pelos deputados Plínio de Arruda Sampaio (do PT, de São Paulo) e Roberto Freire (do então PCB, de Pernambuco). O plenário da Constituinte rejeitou a impugnação e acolheu esses senadores nas votações da Assembléia’

Apesar da derrota na batalha pela Constituinte exclusiva, entenderam as forças populares, penso que corretamente, que não deveriam abandonar a lula. Mesmo diante de um Congresso Constituinte, era preciso pressionar o máximo no sentido de obter o reconhecimento do direito de participação popular nos trabalhos de elaboração da nova Constituição. Através da participação e da pressão popular seria, de qualquer forma, possível alcançar alguns avanços.
A Exuberância das Emendas Populares

O Regimento da Assembléia Nacional Constituinte acolheu o pedido do Plenário Nacional Pró-Participação Popular na Constituinte e admitiu a iniciativa de emendas populares. Por essa via, a população obtinha o direito a uma participação mais direta na elaboração constituinte. O direito de apresentar emendas foi uma grande vitória alcançada pela pressão do povo. Nada menos que 122 emendas foram propostas. Essas emendas alcançaram o total de 12.265.854 assinaturas. Não apenas as forças populares serviram—se do instrumento da iniciativa de emendas. Também as forças conservadoras patrocinaram emendas populares. Contudo, as emendas de origem realmente popular foram em numero muito mais expressivo e obtiveram um total de assinaturas muitíssimo maior.

A coleta de assinaturas foi um momento muito importante no processo de mobilização. Frequentemente as emendas eram assinadas depois de assembléias que as discutiam.
O ritual das emendas populares repetiu-se nos Estados, por ocasião da discussão das Constituições Estaduais. Nessa oportunidade, grandes temas populares foram novamente discutidos e particularizados no nível das unidades da Federação.


Outros Instrumentos Pressão Popular

A pressão popular não se limitou às emendas. Segmentos organizados estiveram presentes nas galerias e nos corredores da Constituinte durante lodo o período de funcionamento da Assembléia. Aí também não foi apenas o povo que fez pressão. As classes dominantes e os grupos privilegiados montaram esquemas formidáveis para acuar a Constituinte. A UDR, por exemplo, mobilizou milhares de pessoas, inclusive jovens, para impedir, como impediu, que a Constituinte abrisse, no texto da Constituição, caminhos facilitadores da reforma agrária.

Além das emendas populares, a população expressou suas opiniões por diversos canais: através de sugestões apresentadas à Comissão Afonso Arinos; nas audiências públicas da Assembléia Constituinte, quando vários lideres puderam expressar a opinião dos segmentos sociais que representavam; através dos mais variados caminhos formais ou informais de que o povo lançou mão, com a criatividade que lhe é própria e com a força de sua esperança (abaixo-assinados, cartas e telegramas dirigidos à Assembléia Constituinte ou a determinados constituintes, atas de reuniões e debates remetidas a parlamentares, cartas de leitores publicadas em jornais etc.).

A Comissão Afonso Arinos foi criada pelo Governo para preparar um projeto de Constituição. Houve uma repulsa inicial dos segmentos organizados da sociedade civil contra a criação dessa Comissão. A sociedade civil queria expressar-se livremente. Repugnava-lhe qualquer espécie de tutela como esta idéia de uma Comissão governamental para fazer um projeto de Constituição. Contudo, em vista do desejo de participação fortemente expresso pelo povo, a própria Comissão Afonso Arinos soube adequar-se à realidade social. Não foi uma Comissão autoritária que pretendesse impor um projeto. Abriu-se também às sugestões da sociedade e ao debate com a sociedade civil. Alguns de seus membros participaram de inúmeras reuniões, ouvindo diretamente o povo e discutindo com o povo, nas mais diversas cidades e regiões do Brasil. A Comissão Afonso Arinos acabou sofrendo a influência do clima de participação presente na sociedade brasileira, no período pré-constituinte.

domingo, 21 de setembro de 2008

Aos alunos de Constitucional 1 do UniCEUB II

Meus caros,

Não deixem de visitar meu outro blog, o APonte. Basta clicar sobre o nome.

Boas leituras e reflexões a todos.

sábado, 20 de setembro de 2008

Abertura: o longo processo constituinte

O AI-5 permaneceu em vigor até 1978, dez anos em que o regime militar sufocou as oposições, exterminando a luta armada das guerrilhas que se formaram a partir de 1968, censurando a imprensa, controlando o Congresso e o Judiciário - o AI-5 havia cassado os Ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima do Supremo Tribunal Federal. Mas, ao mesmo tempo, o Governo promovia o crescimento econômico (média de 11% PIB anual), investia na produção de petróleo, construía Itaipu, era o responsável pelo "milagre brasileiro" e, por isso, tinha a classe média também ao seu lado.

Em 1974 é eleito presidente o General Ernesto Geisel com o compromisso de realizar uma "lenta, gradual e segura" abertura política. Segundo Boris Fausto, a decisão de Geisel não era unanimidade entre os militares, principalmente aqueles de mais baixo escalão que ganharam poder atuando na linha de frente da repressão, a "Linha Dura". Isso ajuda a explicar porque o processo de abertura política realmente fora lento, gradual, mas completamente inseguro, ou seja, cheio de episódios que o ameaçavam. Nem o próprio Geisel queria simplesmente entregar o Governo para a oposição, a pretensão era realizar a transição para um governo civil que fosse convenientemente conservador, isso ficaria claro na escolha governista do deputado Paulo Maluf para a disputa com Tancredo Neves no Colégio Eleitoral de 85.

As intenções ambíguas do governo militar ficariam mais explícitas logo depois das eleições legislativas de 1974, quando o MDB obteve um grande avanço. Preocupado, o governo editou a "Lei Falcão", que regeria as eleições municipais de 76. Essa lei proibia o acesso dos candidatos ao rádio e à televisão, além de outras limitações. Mesmo assim o MDB conseguiu a maioria das prefeituras e vagas nas câmaras de vereadores, derrotando o partido governista, a ARENA. A resposta do Governo viria no ano seguinte e indicava que em lugar de abertura o país viveria um novo retrocesso autoritário. As medidas ficariam conhecidas como "O Pacote de Abril".

Pelo pacote de medidas - que viria a inspirar os fundadores do 1 º bloco carnavalesco de Brasília, o Pacotão - o Congresso entrava em recesso, para que os militares promovessem a sua própria "reforma política", de modo a restaurar o comando da distenção. Essa era a estratégia de Geisel, permitir a abertura partidária e eleitoral, mas dar um jeito de garantir a maioria no Congresso, e assim assegurar a eleição indireta do Presidente da República. Conseguiu, fez o sucessor, o último presidente militar, general João Batista Figueiredo, eleito pelo Colégio Eleitoral em 1978, na época, chefiava o SNI. Outra mensagem ambígua.

Mas o General cumpriria à risca a tarefa de reconduzir o país à democracia, até porque, em determinado momento a sociedade não permitiria mais a permanência dos militares no Poder. Não teríamos uma nova constituição outorgada.

Figueiredo manteve o processo de abertura política e, inclusive, o projeto Geisel de condução desse processo, quando aprovou no Congresso, em agosto de 1979, seu projeto de Lei de ANISTIA, cuja interpretação permitiu essa concessão à linha dura que foi a anistia dos torturadores. Ela, no entanto, permitiu a volta dos exilados políticos, e, conforme B. Fausto, "foi um passo importante na ampliação das liberdades públicas".

Nesse mesmo ano de 79, em novembro, entra em vigor a nova lei orgânica dos partidos políticos, que os obrigava a ostentar a letra "p" em suas siglas. Nascem o PMDB, o PDS (antiga ARENA), o PT, o PDT. As lideranças políticas que dominariam a atenção do processo constituinte brasileiro estavam naquele momento formalmente posicionadas: Ulysses, Tancredo, FHC, Serra, Covas, Lula, Sarney, Roberto Freire, Maluf...

Mas, a primeira e explícita grande manifestação do Poder Constituinte foi a campanha pelas "Diretas Já", o movimento político e popular de apoio à aprovação da proposta de emenda constitucional que instituía as eleições diretas para Presidente da República, as únicas que ainda eram feitas no Colégio Eleitoral, a chamada "Emenda Dante de Oliveira", em homengaem ao deputado matogrossense que a propôs. A emenda foi derrotada pela maioria do PDS no Congresso, mas a força das manifestações populares e a grave crise econômica, denunciada pelas greves de milhões de trabalhadores, levariam ao poder novamente um civil, com a eleição de Tancredo Neves em 85. Figueiredo não transferiu a faixa presidencial para Sarney, que tomara posse na condição de vice. Pediu que o esquecessem e foi atendido. Como se sabe, Tancredo faleceu no dia de Tiradentes. Na cena política os militares deram a vez aos partidos e aos políticos, novamente. A nova Constituição acabaria com o voto indireto para a escolha do Presidente e isso iria provocar a primeira e talvez mais difícil crise institucional de toda a sua vigência, o caso Collor.

A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em fevereiro de 1987. Nas eleições do ano anterior, o PMDB fez todos os governadores dos Estados, à exceção de Sergipe. Conquistou também a maioria absoluta das cadeiras na Câmara e no Senado. De seu interior nasceria mais tarde o PSDB. A Constituinte de 87-88, no entanto, não foi obra exclusiva dos partidos, seu método e duração proporcionariam a riqíssima experiência democrática de participação dos diversos grupos e organizações sociais da sociedade brasileira na definição dos novos direitos constitucionais. O resultado já tem 20 anos de duração.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Síntese das Constituições do Brasil

Constituição do Império (1824)
· Foi outorgada em 25 de março de 1824, por Pedro I, após dissolver por decreto, em 12 de Novembro de 1823, a Assembléia Constituinte que ele próprio convocara como resultante da proclamação da Independência, em 7 de Setembro de 1822.
· Consagrou uma Monarquia hereditária, Constitucional e representativa.
· Instituiu o Quarto Poder (Poder Moderador – poder próprio do Monarca).
· Dizia-se liberal.

Constituição Republicana (1891)
· Promulgada em 24 de Fevereiro de 1891, por um Assembléia Constituinte convocada pelo Governo Provisório, instituído após a proclamação da República, em 15 de Novembro de 1889.
· O Chefe da Assembléia Constituinte foi o Marechal Deodoro da Fonseca.
· Foi elaborada com base no projeto governamental, no qual Rui Barbosa se destacou como um dos principais se não o principal e mais perfeito artífice.
· Foi eminentemente política “apesar de o séc. XIX ter sofrido já em seu fim o embate da doutrina de Carl Marx; apesar de já ter o socialismo influído de maneira preponderante na política do séc. XIX; apesar de a industrialização do mundo já ter começado e, por conseguinte, o movimento trabalhista já se fazer sentir.”
· O Federalismo, o presidencialismo e o liberalismo político foram os princípios estruturais da Primeira Constituição Republicana do Brasil, na qual se estabeleceu, sob a inspiração de Montesquieu, que “são órgãos da soberania nacional: o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si.”
· A Constituição norte-americana de 1787 foi o modelo em que buscaram luzes os constituintes de 1891, que também captaram nas Constituições da Argentina e da Suíça alguns elementos para o seu notável trabalho.

Constituição de 1934
· Promulgada em 16 de julho de 1934, por uma Assembléia Constituinte que o governo provisório instalou após a Revolução de 1930, sob a chefia de Getúlio Vargas.
· Ao contrário da anterior (de 1891), que foi eminentemente política, a Constituição de 34, seguindo uma nova concepção do Direito e do Estado, recebeu, de maneira sensível, a influência dos abalos sociais provocados pela Primeira Guerra Mundial (1914- 1918)
· Que adiantava reafirmar a independência jurídica do indivíduo, se não se criava “o mínimo das condições necessárias para garantir-lhes a independência social?”
· Importantes inovações da Constituição de 34 foram a instituições da Justiça do Trabalho (embora não diretamente integrada na esfera do Poder Judiciário, como em 1946) e a criação da Justiça Eleitoral, destinada a pôr modos nos desregramentos que aumentaram até 1930 e que foram causa preponderante do movimento revolucionário que eclodiu e venceu naquele ano.
· Renovação da mentalidade de nossas agremiações partidárias, na qual teve ingresso, com poder decisório, na medida de suas forças, os elementos oriundos de diferentes categorias sociais, ao lado dos chamados políticos profissionais, que, com o processo indispensável de sua reabilitação, passaram a ser tratados como políticos vocacionais, expressão mais condizente, sem dúvida, com o alto teor da missão que tinham sobre os ombros.
· Participaram da elaboração da Lei Magna de 1934, em meio a heterogeneidade de seus integrantes, figuras das mais destacadas daquela fase política e elementos novos que se afirmaram nos debates e se projetaram no futuro.

Carta Política de 1937
· Outorgada, num golpe de Estado, em 10 de Novembro de 1937, em plena campanha presidencial, pelo próprio Chefe do Governo, Getúlio Vargas, que a impôs sob a justificativa, falsa, como tantas outras emanadas do arbítrio, de que o povo (é o que se lê no preâmbulo da Constituição de 1937) estaria com sua “paz política e social profundamente perturbadas por conhecidos fatores de desordem”, “uma notória propaganda demagógica” procurava “desnaturar em luta de classes”, com a “extremação de conflitos ideológicos” que tendiam “a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência de guerra civil; e, para não ir mais longe, a infiltração comunista se tornava “dia a dia mais extensa e profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente.”
· Conhecida vulgarmente, e durante muito tempo, como “a polaca”, por ter buscado inspiração na Constituição da Polônia, a Carta de 1937 só chegou a ser executada naquelas partes em que conduzia ao paroxismo o poder presidencial, com a substituição do Congresso pela competência legiferante do Ditador.
· No seu texto, figuravam outros dispositivos, tanto ou mais distanciados das boas normas democráticas, tais como o ruidoso art. 177, que permitiu a aposentadoria ou reforma de funcionários civis e militares cujo afastamento se impôs “a juízo exclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência do regime”, e a faculdade, atribuída ao Presidente da República, sem qualquer contratação, com a expressa referência de que a matéria escapava à ação do Parlamento Nacional, de declarar o estado de emergência ou o estado de guerra, muito mais violentos do que o estado de sítio. Por outro lado, havia no documento imposto em 37 à Nação estarrecida, dispositivos contrários à índole do nosso povo, inclusive, para deter-nos e não ir adiante a própria pena de morte admitida, mesmo sem ser em tempo de guerra, para tentativas de submissão do território nacional à soberania de Estado estrangeiro ou de mudança da ordem política e social, e para o homicídio cometido fútil e perversamente.
· Tão extravagante eram, na sua maioria as ordenações da Carta de 37, que o próprio Ditador preferiu não pô-las em execução, deixando, inclusive, de submeter seu texto ao plebiscito nacional, de realizar as eleições nela previstas, bem como de constituir o Parlamento, que nunca se reuniu durante todo o “Estado Novo”.
· Segundo Cláudio Pacheco, “pode-se dizer que a Constituição esteve permanentemente suspensa, por todo o período da fictícia vigência, em tudo que pudesse obstar ao exercício totalitário e irrestrito do poder individualizado, ditatorial, que fora a sua fonte, que se manteve como o seu verdadeiro conteúdo e sua primordial finalidade. Em suma, a Constituição representou apenas, paradoxalmente, a formalização passageira de impulsos e interesses opostos a qualquer constitucionalização, abrindo espaço, durante nove anos, ao exercício daquele poder individualizado, e afinal desmoronou em rigorosa consonância com o debilitamento e a retração dos mesmos fatores que conduziram ao primitivismo político em que ela se gerara”.
· A Constituição de 37 não tinha, portanto, vigência constitucional. Era um documento de caráter puramente histórico e não jurídico.
· De 1937 a 1945, o Brasil viveu praticamente sem Constituição, sob domínio incontrastável da Ditadura.

Constituição de 1946
· Promulgada em 18 de Setembro de 1946, por uma Assembléia eleita conjuntamente com o novo Presidente da República (General Eurico Gaspar Dutra).
· O Estatuto Fundamental de 1946 foi, na maioria de seus aspectos, uma reprodução melhorada da lei básica de 1934, embora sem muitos de seus defeitos e com novas virtualidades a serviço do bem público.
· Embora considerada analítica em excesso representou um esforço bem sucedido no encaminhamento dos nossos problemas jurídicos fundamentais, com proveitosas incursões no campo das conquistas econômicas e sociais, e uma penetração sensível nos domínios da educação, da cultura e do funcionamento público.
· Como inovações da Constituição de 46, temos o restabelecimento do cargo de Vice-Presidente da República, suspenso em 1934; a criação do Tribunal Federal de Recursos e do Conselho Nacional de Economia; a integração da Justiça do Trabalho no âmbito do Poder Judiciário; o dispositivo que vedou a organização, registro ou funcionamento de qualquer partido político ou associação cujo programa de ação contrariasse o regime democrático (Partido Comunista); o reconhecimento do direito de greve; a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa (preceito que não chegou a ser disciplinado em lei ordinária) e a aposentadoria facultativa do funcionário com 35 anos de serviço.

Constituição de 1967
· Referendada em 24 de Janeiro de 1967, pelo Congresso Nacional, investido do poder constituinte delegado. Posta em vigor em 15 de março do mesmo ano. Foi mantida a forma federalista do Estado, todavia com maior expansão da União.
· Na separação dos poderes foi dada maior ênfase ao Executivo cujo Presidente passou a ser eleito indiretamente por um colégio eleitoral, mantendo-se a linha básica dos demais poderes, legislativo e Judiciário. "Alterou-se com maior riqueza a estrutura do processo legislativo, surgindo o regime da legislação delegada e dos decretos-leis."
· A Constituição de 1967 sofreu diversas emendas, porém, diante dos diversos atos institucionais e complementares, cogitou-se de uma unificação do seu texto. Até então haviam sido promulgados dezessete atos institucionais e setenta e três atos complementares. Em 17.10.1969 foi promulgada a Emenda no 1 à Constituição de 1967, combinando com o espírito dos atos institucionais elaborados. A Constituição de 1967 recebeu ao todo vinte e sete emendas.

Constituição de 1988

· Promulgada em 05 de outubro de 1988 tendo Ulysses Guimarães como Presidente da Assembléia Nacional Constituinte. A nova Lei Magna restaurou a ordem democrática, mas, manteve em seu bojo certo entulho autoritário como a Medida Provisória que surgiu em substituição à legislação delegada e ao decreto-lei. A nova Carta Política ora em vigor possui trezentos e vinte artigos e é por isso considerada analítica. Já a Constituição de 24.2.1891 era sintética com oitenta e cinco artigos e mais doze das Disposições Transitórias era considerada uma das menores do mundo. "Entre as Constituições sintéticas podem ser mencionadas a dos Estados Unidos de 1787, com trinta e três artigos, a da França de 1958, com noventa e dois artigos, e a do Japão de 1947, com cento e dois artigos. Entre as Constituições analíticas mais longas podem ser referidas a da índia de 1949, com trezentos e noventa e cinco artigos, a do Peru de 1978, com trezentos e vinte e cinco artigos, e a de Portugal de 1976, com trezentos e cinco artigos. A nossa atual Constituição, conforme já foi dito, conta com trezentos e vinte artigos; é no fundo uma meia Constituição, pois para a sua exeqüibilidade ficou dependendo de trinta e três leis complementares e cerca de cento e trinta leis ordinárias." (Pinto Ferreira)

· A Constituição vigente já sofreu trinta e uma emendas constitucionais até dezembro de 2000 e seis emendas constitucionais de revisão, como previsto nos termos do seu artigo 60, combinado com o artigo 3o do Ato das Disposições Transitórias.

· Resta ressaltar que nossa Constituição é escrita quanto à forma, votada quanto à origem, rígida pela dificuldade da respectiva revisão, unitária quanto à sistemática e eclética no que se refere a sua dogmática ou inspiração.

Disponível em: http://www.loveira.adv.br/material/tc4.htm

Atos Institucionais: a contra-constituição

Os militares tiveram participação decisiva em praticamente todas as fases da nossa história republicana: na proclamação (1889), na Revolução de 30, no Estado Novo (1937), na deposição de Vargas (1945), nas "crises" da República de 46, inclusive no episódio dramático do suicídio de Getúlio, em 1954. Em 1964, porém, os militares não apenas derrubaram o poder constituído, mas o ocuparam durante duas longas décadas. Período no qual o Brasil conheceu duas novas Constituições, a de 67 e a de 69. É bem verdade que em 1969 o que houve foi uma grande emenda constitucional, a de nº 1, mas que alterava de tal forma e em tamanha extensão a Constituição de 67 que passou a ser considerada uma nova Carta. Essa aparente abundância constitucional não mais esconde o fato, apontado com toda clareza por Paulo Bonavides, de "que a verdadeira Constituição daqueles anos foram os atos inastitucionais".

Invenção jurídica dos militares, os atos institucionais foram justificados pelo novo regime como emanações do Poder Constituinte. Para os generais, não se tratava de golpe, mas de Revolução. O texto do preâmbulo do AI 1, de 9 de abril de 1964, é auto-explicativo:

"A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma."

Os primeiros 4 Atos Institucionais, baixados nos dois primeiros anos do regime militar já promoveram a varredura das instituições democráticas de 46. O AI-1 autorizava a supensão de direitos políticos por 10 anos e a cassação de mandatos; o AI-2 extinguiu os partidos políticos (o que frustrou as lideranças golpistas da UDN), permitia a decretação do recesso do Congresso Nacional e a edição de decretos-leis sobre matéria de segurança nacional; o AI-3 estendeu o sistema de eleição indireta para os governadores e vice-governadores; e o AI-4 convocou o Congresso Nacional a se reunir extraordinariamente para discutir e votar um novo texto constitucional.

Não é curioso? O "Poder Constituinte" revolucionário convoca o Congresso representativo para aprovar a nova Constituição. Não parece simplesmente desnecessário? Dito de outro modo, para que uma nova Constituição votada pelo Congresso se os Atos Institucionais vinham cumprindo o mesmo papel? A resposta talvez esteja no fato de que os militares sempre tenham afirmado que o estado revolucionário seria transitório, uma "intervenção cirúrgica", para preservar a democracia liberal contra a ameaça comunista. Depois de garantida a estabilidade e eliminados os focos perigosos, o poder voltaria ao leito democrático. Infelizmente, isso não era verdade. A verdade é que nesse período recente de nossa história o Direito foi apenas um disfarce, uma fachada para o exercício arbitrário do Poder.

Mais uma vez recorro a Bonavides, que sem perder o bom humor, narrou assim os efêmeros eventos do "processo constituinte" de 67:

"O AI-4 convoca o Congresso Nacional a reunir-se extraordinariamente para discutir e votar um novo texto contitucional. Diga-se, de passagem, que o ato fixava um cronograma tão rígido que mais parecia tratar-se da abertura de uma nova estrada rodoviária ou da construção de mais uma ponte. E o calendário pré-estabelecido foi cumprido rigorosamente. O projeto enviado pelo Governo chegou ao Congresso em 12-12-66 e a Carta foi promulgada a 24-1-67, pouco mais de 40 dias depois, portanto. É patente que ela se tornou uma mera formalidade, natimorta porque submetida e anulada pelos atos. Que sentido poderia ter o capítulo "Dos Direitos e Garantias Individuais" diante do arbítrio instaurado pelos atos?"

De fato, há certas semelhanças no que diz respeito à vida curta e a falta de eficácia entre a Constituição de 67 e a de 34. A de 67 foi atropela pelo AI-5 e depois definitivamente superada pela Emenda 1 de 69, a assim chamada Constituição de 69.

A aparência de Estado de Direito era o que pretendiam os militares ao procurar revestir seus atos de força com fórmulas normativas (os atos institucionais, complementares, decretos, regulamentos...) e convenções políticas de matriz liberal, como são as constituições. Essa fachada formal de legalidade, aliás, encontra justificativas teóricas muito claras no modelo teórico juspositivista, que tem em Hans Kelsen seu defensor mais obstinado e honesto. Mas, fica a pergunta, faz sentido falar em Constituição sem liberdade?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968

"O presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e:

Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao país um regime que, atendendo as exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional no 1 de 9 de abril de 1964);

Considerando que o governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional no 2, afirmou categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;

Considerando que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional no 4, de 7 de dezembro de 1966);Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

Considerando que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição.

Resolve editar o seguinte:

Ato Institucional

Art. 1º São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.

Art. 2º O presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo presidente da República.

§ 1º Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

§ 2º Durante o período de recesso, os senadores, os deputados federais e estaduais e os vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios.

§ 3º Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos municípios que não possuam Tribunal de Contas será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.

Art. 3º O presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Parágrafo único. Os interventores nos estados e municípios serão nomeados pelo presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos governadores ou prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixadas em lei.

Art. 4º No interesse de preservar a Revolução, o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único. Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem os seus mandatos cassados não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art. 5º A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa simultaneamente, em:

I. cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II. suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III. proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado.

§ 1º O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.

§ 2º As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo ministro de estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.

Art. 6º Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.

§ 1º O presidente da República poderá, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou por em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.

§ 2º O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos estados, municípios, Distrito Federal e territórios.

Art. 7º O presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.

Art. 8º O presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.

Parágrafo único. Provada a legitimidade da aquisição dos bens far-se-á a sua restituição.

Art. 9º O presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas "d" e "e" do § 2º do artigo 152 da Constituição.

Art. 10º Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.Art. 11º Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

Art. 12º O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.

Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º a Independência e 80º da República. A. Costa e Silva; Luís Antônio da Gama e Silva; Augusto Hamann Rademaker Grunewald; Aurélio de Lyra Tavares; José de Magalhães Pinto; Antônio Delfim Netto; Mário David Andreazza; Ivo Arzua Pereira; Tarso Dutra; Jarbas G. Passarinho; Márcio de Souza e Mello; Leonel Miranda; José Costa Cavalcanti; Edmundo de Macedo Soares; Hélio Beltrão; Afonso de A. Lima; Carlos F. de Simas."

AI-5 - O mais duro golpe do regime militar

Maria Celina D'Araujo

O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.

O ano de 1968, "o ano que não acabou", ficou marcado na história mundial e na do Brasil como um momento de grande contestação da política e dos costumes. O movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas principalmente como demanda por novas liberdades. O radicalismo jovem pode ser bem expresso no lema "é proibido proibir". Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a "linha dura" providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição.

Também no decorrer de 1968 a Igreja começava a ter uma ação mais expressiva na defesa dos direitos humanos, e lideranças políticas cassadas continuavam a se associar visando a um retorno à política nacional e ao combate à ditadura. A marginalização política que o golpe impusera a antigos rivais - Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart - tivera o efeito de associá-los, ainda em 1967, na Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. Pouco depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, reintroduziu o atestado de ideologia como requisito para a escolha dos dirigentes sindicais. Uma greve dos metalúrgicos em Osasco, em meados do ano, a primeira greve operária desde o início do regime militar, também sinalizava para a "linha dura" que medidas mais enérgicas deveriam ser tomadas para controlar as manifestações de descontentamento de qualquer ordem. Nas palavras do ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, o governo precisava ser mais enérgico no combate a "idéias subversivas". O diagnóstico militar era o de que havia "um processo bem adiantado de guerra revolucionária" liderado pelos comunistas.

A gota d'água para a promulgação do AI-5 foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara, nos dias 2 e 3 de setembro, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças, "ardentes de liberdade", se recusassem a sair com oficiais. Na mesma ocasião outro deputado do MDB, Hermano Alves, escreveu uma série de artigos no Correio da Manhã considerados provocações. O ministro do Exército, Costa e Silva, atendendo ao apelo de seus colegas militares e do Conselho de Segurança Nacional, declarou que esses pronunciamentos eram "ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis". O governo solicitou então ao Congresso a cassação dos dois deputados. Seguiram-se dias tensos no cenário político, entrecortados pela visita da rainha da Inglaterra ao Brasil, e no dia 12 de dezembro a Câmara recusou, por uma diferença de 75 votos (e com a colaboração da própria Arena), o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. No dia seguinte foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. No preâmbulo do ato, dizia-se ser essa uma necessidade para atingir os objetivos da revolução, "com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país". No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado - só em outubro de 1969 o Congresso seria reaberto, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.

Ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com "sangue, suor e lágrimas".

Brasil: de 1964 a 1989



Colagem de imagens e áudios do período militar. O vídeo é longo, precisa esperar carregar.

O golpe de 1964 e a instauração do Regime Militar

Celso Castro

Na madrugada do dia 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído de João Goulart. A falta de reação do governo e dos grupos que lhe davam apoio foi notável. Não se conseguiu articular os militares legalistas. Também fracassou uma greve geral proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em apoio ao governo. João Goulart, em busca de segurança, viajou no dia 1o de abril do Rio, para Brasília, e em seguida para Porto Alegre, onde Leonel Brizola tentava organizar a resistência com apoio de oficiais legalistas, a exemplo do que ocorrera em 1961. Apesar da insistência de Brizola, Jango desistiu de um confronto militar com os golpistas e seguiu para o exílio no Uruguai, de onde só retornaria ao Brasil para ser sepultado, em 1976. Antes mesmo de Jango deixar o país, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, já havia declarado vaga a presidência da República.

O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a presidência, conforme previsto na Constituição de 1946, e como já ocorrera em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. O poder real, no entanto, encontrava-se em mãos militares. No dia 2 de abril, foi organizado o autodenominado "Comando Supremo da Revolução", composto por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e o general Artur da Costa e Silva, representante do Exército e homem-forte do triunvirato. Essa junta permaneceria no poder por duas semanas.

Nos primeiros dias após o golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no espectro político, como por exemplo o CGT, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). Milhares de pessoas foram presas de modo irregular, e a ocorrência de casos de tortura foi comum, especialmente no Nordeste. O líder comunista Gregório Bezerra, por exemplo, foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife.

A junta baixou um "Ato Institucional" – uma invenção do governo militar que não estava prevista na Constituição de 1946 nem possuía fundamentação jurídica. Seu objetivo era justificar os atos de exceção que se seguiram. Ao longo do mês de abril de 1964 foram abertos centenas de Inquéritos Policiais-Militares (IPMs). Chefiados em sua maioria por coronéis, esses inquéritos tinham o objetivo de apurar atividades consideradas subversivas. Milhares de pessoas foram atingidas em seus direitos: parlamentares tiveram seus mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos e funcionários públicos civis e militares foram demitidos ou aposentados.

Entre os cassados, encontravam-se personagens que ocuparam posições de destaque na vida política nacional, como João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes. Entretanto, o golpe militar foi saudado por importantes setores da sociedade brasileira. Grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, da Igreja católica, vários governadores de estados importantes (como Carlos Lacerda, da Guanabara, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Ademar de Barros, de São Paulo) e amplos setores de classe média pediram e estimularam a intervenção militar, como forma de pôr fim à ameaça de esquerdização do governo e de controlar a crise econômica. O golpe também foi recebido com alívio pelo governo norte-americano, satisfeito de ver que o Brasil não seguia o mesmo caminho de Cuba, onde a guerrilha liderada por Fidel Castro havia conseguido tomar o poder.

Os Estados Unidos acompanharam de perto a conspiração e o desenrolar dos acontecimentos, principalmente através de seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, e do adido militar, Vernon Walters, e haviam decidido, através da secreta "Operação Brother Sam", dar apoio logístico aos militares golpistas, caso estes enfrentassem uma longa resistência por parte de forças leais a Jango. Os militares envolvidos no golpe de 1964 justificaram sua ação afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a "ameaça comunista" que, segundo eles, pairava sobre o Brasil. Uma idéia fundamental para os golpistas era que a principal ameaça à ordem capitalista e à segurança do país não viria de fora, através de uma guerra tradicional contra exércitos estrangeiros; ela viria de dentro do próprio país, através de brasileiros que atuariam como "inimigos internos" – para usar uma expressão da época. Esses "inimigos internos" procurariam implantar o comunismo no país pela via revolucionária, através da "subversão" da ordem existente – daí serem chamados pelos militares de "subversivos".

Diversos exemplos internacionais, como as guerras revolucionárias ocorridas na Ásia, na África e principalmente em Cuba, serviam para reforçar esses temores. Essa visão de mundo estava na base da chamada "Doutrina de Segurança Nacional" e das teorias de "guerra anti-subversiva" ou "anti-revolucionária" ensinadas nas escolas superiores das Forças Armadas. Os militares que assumiram o poder em 1964 acreditavam que o regime democrático que vigorara no Brasil desde o fim da Segunda Guerra Mundial havia se mostrado incapaz de deter a "ameaça comunista".

Com o golpe, deu-se início à implantação de um regime político marcado pelo "autoritarismo", isto é, um regime político que privilegiava a autoridade do Estado em relação às liberdades individuais, e o Poder Executivo em detrimento dos poderes Legislativo e Judiciário. Já no início da "Revolução" ficou evidente uma característica que permaneceria durante todo o regime militar: o empenho em preservar a unidade por parte dos militares no poder, apesar da existência de conflitos internos nem sempre bem resolvidos. O medo de uma "volta ao passado" (isto é, à realidade política pré-golpe) ou de uma ruptura no interior das Forcas Armadas estaria presente durante os 21 anos em que a instituição militar permaneceu no controle do poder político no Brasil.

Mesmo desunidos internamente em muitos momentos, os militares demonstrariam um considerável grau de união sempre que vislumbravam alguma ameaça "externa" à "Revolução", vinda da oposição política. A falta de resistência ao golpe de 1964 não deve ser vista como resultado da derrota diante de uma bem articulada conspiração militar. Foi clara a falta de organização e coordenação entre os militares golpistas. Mais do que uma conspiração única, centralizada e estruturada, a imagem mais fidedigna é a de "ilhas de conspiração", com grupos unidos ideologicamente pela rejeição da política pré-1964, mas com baixo grau de articulação entre si. Não havia um projeto de governo bem definido, além da necessidade de se fazer uma "limpeza" nas instituições e recuperar a economia. O que diferenciava os militares golpistas era a avaliação da profundidade necessária à intervenção militar.

Desde o início havia uma nítida diferenciação entre, de um lado, militares que clamavam por medidas mais radicais contra a "subversão" e apoiavam uma permanência dos militares no poder por um longo período e, de outro lado, aqueles que se filiavam à tradição de intervenções militares "moderadoras" na política – como havia acontecido, por exemplo, em 1930, 1945 e 1954 – seguidas de um rápido retorno do poder aos civis. Os mais radicais aglutinaram-se em torno do general Costa e Silva; os outros, do general Humberto de Alencar Castelo Branco.

Articulações bem-sucedidas na área militar de um grupo de oficiais pró-Castelo e o apoio dos principais líderes políticos civis favoráveis ao golpe foram decisivos para que, no dia 15 de abril de 1964, Castelo Branco assumisse a presidência da República, eleito, dias antes, por um Congresso já bastante expurgado. O novo presidente assumiu o poder prometendo a retomada do crescimento econômico e o retorno do país à "normalidade democrática". Isto, no entanto, só ocorreria 21 anos mais tarde. É por isso que 1964 representa um marco e uma novidade na história política do Brasil: diferentemente do que ocorreu em outras ocasiões, desta vez militares não apenas deram um golpe de Estado, como permaneceram no poder.

Os Direitos Humanos e a Constituição de 1967

João Batista Herkenhoff

Já vimos no item 5, neste capítulo, os motivos pelos quais a Constitui­ção de 1967 deve ser considerada como semi-outorgada. Comparada com a Constituição de 1946 a Constituição de 24 de janeiro de 1967, que entrou em vigor a 15 de março, apresenta graves retrocessos:

a) suprimiu a liberdade de publicação de livros e periódicos ao afirmar que não seriam tolerados os que fossem considerados (a juízo do governo) como de propaganda de subversão da ordem (A Constituição de 1967 afirmava, em princípio, que a publicação de livros e periódicos independia de licença do poder público. Enquanto a Constituição de 1946 estabelecera que não seria tolerada a propaganda de processos violentos para subverter a ordem política e social art. 141, 5º - a Constituição de 1967 passou a proibir a propaganda de subversão da ordem, sem exigir a qualificação de processos violentos” para a incidência da proibição - art. 150 8º);
b) restringiu o direito de reunião facultando à policia o poder de designar o local para ela. Usando desse poder como artifício, a policia poderia facilmente impossibilitar a reunião. (A Constituição de 1946, ao determinar que a polícia poderia designar o local para a realização de uma reunião. ressalvava que, assim procedendo, não a poderia frustrar ou impossibilitar. A Constituição de 1967 não reproduziu a ressalva);
c) estabeleceu o foro militar para os civis. (O foro militar, na mesma linha da emenda constitucional ditada pelo Ato institucional n.º 2, estendeu-se aos civis, nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares art. 122. 1º. Pela Constituição de 1946 o civil só estaria sujeito à jurisdição militar no caso de crimes contra a segurança externa do pais ou as instituições militares - art. 108, 1º);
d) criou a pena de suspensão dos direitos políticos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, para aquele que abusasse dos direitos políticos ou dos direitos de manifestação do pensamento, exercício de trabalho ou profissão, reunião e associação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção - art. 151. (Essa competência punitiva do Supremo era desconhecida pelo Direito Constitucional brasileiro);
e) manteve todas as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais. (O reencontro do caminho democrático só começou com Anistia, alcançada cm 1 979. Isto porque foi justa utente a Anistia que acabou com os efeitos de todas essas medidas ditatoriais);
f) em contraste com as determinações restritivas mencionadas nas letras anteriores, a Constituição de 1967 determinou que se impunha a todas as autoridades o respeito á integridade física e moral do detento e do presidiário, preceito que não existia, explicitamente. nas Constituições anteriores. (Esse artigo foi repetido na Constituição de 1988. A eficácia do artigo, na Constituição de 1967. ficou, entretanto ajuizada, em vista do clima geral de redução de liberdade e a consequente impossibilidade de denúncia dos abusos que ocorressem).

No que diz respeito aos direitos sociais, a Constituição de 1967 inovou em alguns pontos.

Registrem-se como inovações contrárias ao trabalhador: a redução para 12 anos da idade mínima de permissão do trabalho; a supressão da estabilidade, como garantia constitucional, e o estabelecimento do regime de fundo de garantia, como alternativa; as restrições ao direito de greve; a supressão da proibição de diferença de salários, por motivo de idade e nacionalidade, a que se referia a Constituição anterior.

Para tão imensos retrocessos, a Constituição de 1967 pretendeu compensar os trabalhadores com pequeninas vantagens. Colhem-se como modestas inovações favoráveis ao trabalhador as seguintes: inclusão, como garantia constitucional, do direito ao salário-família, cm favor dos dependentes do trabalhador; proibição de diferença de salários também por motivo de cor. Circunstância a que não se referia a Constituição de 1946; participação do trabalhador. eventualmente. na gestão da empresa; aposentadoria da mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral.

A Constituição de 1967 afrontou a lei sociológica e histórica que aponta. invariavelmente, para a ampliação de direitos dos trabalhadores.

A Constituição de 1967 representou um esforço de redução do arbítrio contido nos Atos Institucionais que se seguiram à Revolução de 1964. Tentou não se distanciar em demasia do figurino constitucional de 1946. Sua dose de autoritarismo não se compara com o panorama de completo arbítrio criado pelo Ato Institucional n.º 5. que caiu sobre o Brasil depois, no fatídico 13 de dezembro de 1968.

Entretanto, mesmo com todas essas ressalvas, a Constituição de 1967 não se harmonizou com a doutrina dos Direitos Humanos, pelas seguintes razões: restringiu a liberdade de opinião e expressão; deixou o direito de reunião a descoberto de garantias plenas; estendeu o foro militar aos civis, nas hipóteses de crimes contra a segurança interna (ou seta, segurança do próprio regime imperante); fez recuos no campo dos direitos sociais; manteve as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais.

Também a Constituição de 1967, formalmente. teve vigência até sua substituição pela Carta de 17 de outubro de 1969. Contudo, a rigor, vigorou apenas até 13 de dezembro de 1968, quando foi baixado o Ato Institucional n.º 5. O Ato Institucional n.º 5 afirmou mantida a Constituição de 1967, introduziu, entretanto, tão profundas modificações na estrutura do poder político e em matéria de direitos individuais que, numa visão cientifica, não se pode conciliar esse Ato com o espirito da Constituição de 1967. Na verdade, esta ruiu sob o AI-5.

A Constituição de 1946

Américo Freire

A Assembléia Nacional Constituinte, nos regimes liberais-representativos, é um órgão de natureza especial. Trata-se de uma assembléia com poderes extraordinários que tem a função precípua de construir as bases jurídico-políticas do país. O trabalho constituinte consiste em definir princípios gerais e em torno deles estabelecer um conjunto orgânico de regras e instituições. A regulamentação desse conjunto legal, para a sua aplicação na vida cotidiana, fica em geral por conta dos órgãos legislativos ordinários.

O trabalho constituinte, mesmo voltado para o futuro, está imerso nas circunstâncias políticas do presente. É exatamente por isso que cada resolução aprovada, cada detalhe colocado no texto constitucional, ainda que vago, genérico ou afirmativo, expressa os diversos pactos que se estabelecem entre as forças políticas ali representadas.

A Constituinte de 1946, eleita em 2 de dezembro de 1945, iniciou seus trabalhos em 2 de fevereiro seguinte sob o impacto da derrota do nazi-fascismo na Europa e do fim do Estado Novo no Brasil. Não por acaso, durante os primeiros meses de discussão, de fevereiro a maio, promoveu-se um duro julgamento do regime anterior. Produziu-se, em suma, o que se denominou a "autópsia da ditadura".

Outra marca distintiva da Constituinte de 1946 em comparação com as anteriores foi sua heterogeneidade político-ideológica. Dela participaram deputados e senadores eleitos na legenda de nove partidos, ou seja, representativos de todo o espectro político e donos de diferentes trajetórias políticas até aquele momento. No mesmo plenário estiveram presentes, incumbidos da elaboração da nova Carta, o ex-presidente Artur Bernardes, do Partido Republicano (PR), e Luís Carlos Prestes, do Partido Comunista do Brasil (PCB), que como líder tenentista fora perseguido ferozmente por Bernardes na década de 1920; os udenistas Otávio Mangabeira e Afonso Arinos, notórios opositores do Estado Novo, mas também Gustavo Capanema e Agamenon Magalhães, importantes ministros do antigo regime; o próprio Getúlio Vargas, que, apesar da notoriedade, teve uma participação discreta e inconstante.

Unidas em torno de um projeto liberal-democrático, as forças predominantes na Constituinte, a saber, o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), que juntos ocupavam cerca de 80% das cadeiras, produziram um texto preocupado fundamentalmente em delimitar o raio de ação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para evitar uma nova experiência política baseada no poder discricionário do Executivo.

O mandato presidencial foi fixado em cinco anos, e foi mantida a proibição da reeleição para cargos executivos. As atribuições do Congresso foram fortalecidas, principalmente as que diziam respeito à inspeção das ações do Executivo. Todas as medidas administrativas ou de política econômica do governo, mesmo as de curto prazo, deveriam receber a autorização do Congresso. Foi restaurado o princípio federalista, estabelecendo-se a divisão de atribuições entre a União, os estados e os municípios.

Esse controle congressual, no entanto, terminaria por ser evitado pelos presidentes da República que se sucederam, os quais tiveram ampla liberdade para criar órgãos de natureza técnica. Por sua vez, principalmente no segundo governo Vargas (1951-1954) e no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), esses órgãos passaram a deter enormes poderes para implementar a modernização da economia brasileira, o que seria feito em grande parte à margem da estrutura partidária.

No que se refere ao voto, a nova Constituição extinguiu a bancada profissional, presente na Carta de 1934, e ampliou a obrigatoriedade do voto feminino, antes restrita às mulheres que exercessem cargo público remunerado. Quanto à composição da Câmara dos Deputados, foi estabelecido um critério que beneficiou a representação dos estados de menor população em detrimento dos estados mais populosos. Essa medida, justificada pelo argumento da necessidade de se manter o equilíbrio federativo, terminou por fortalecer os grupos políticos mais conservadores, amplamente majoritários nos estados menores, em detrimento de agremiações que tinham maior representação em estados mais populosos, como os partidos à esquerda do espectro político.

No plano social, a Constituinte optou por uma postura conservadora. No tocante ao direito de greve, aprovou um texto genérico que reconhecia o direito, mas deixava para o Congresso uma futura regulamentação, que terminou por não vir. Além disso, manteve dois fundamentos da estrutura corporativista advinda do regime anterior: o imposto sindical, passaporte para o aparecimento e a manutenção dos sindicatos controlados pelos "pelegos", e a possibilidade de o Estado intervir na vida sindical. Como na ideologia estado-novista, o sindicato continuava a ser visto como órgão de colaboração do Estado. Nesse caso, era clara a contradição com a ideologia liberal apregoada pela quase totalidade dos constituintes. Uma vez mais, foram as circunstâncias de natureza conjuntural, marcadas pela ampliação da luta sindical, que definiram o texto constitucional: a estrutura sindical anterior mostrava-se adequada para assegurar a ordem social e política.

No dia 18 de setembro de 1946, o novo texto constitucional foi aprovado e Assembléia Nacional Constituinte se transformou em Congresso ordinário. Durante o governo Dutra, a nova Constituição seria interpretada tanto para assegurar direitos como para restringir o pluralismo político, como aconteceu quando da cassação do registro do PCB, em maio de 1947.

FGV-CPDOC