terça-feira, 19 de agosto de 2008

Força normativa: para a Constituição sair do papel

Parece até redundante, nos dias de hoje, falar em força normativa da Constituição. Ora, se ela é a lei maior de uma nação não é natural que tenha força normativa? Em outras palavras, como lei que é - e ainda posicionada acima das demais -, não seria óbvio dizer que a Constituição nos obriga a todos o seu cumprimento?

Mas não é assim tão simples o problema da força normativa de uma constituição. Tanto é verdade que um dos textos importantes na relação bibliográfica de nossa disciplina tem exatamente este título ("A Força Normativa da Constituição"), e foi escrito por Konrad Hesse, professor alemão, em 1959, dez anos após a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, a Constituição da Alemanha do pós-guerra, momento em que o conceito trazia um sabor de novidade.

Não é por acaso que Hesse tenha iniciado seu trabalho lembrando outro texto importante - para rebater suas proposições: "A Essência da Constituição", de Ferdinand Lassalle. Como vimos, em sua obra, Lassalle fazia a distinção entre a Constituição jurídica ("folha de papel") e a Constituição real (soma dos fatores reais de poder de uma sociedade), para sustentar que as questões constitucionais não seriam questões jurídicas - como são os contratos, as obrigações, os crimes e as penas, os tributos etc. -, mas verdadeiras questões políticas, ou seja, questões que se resolvem pela intervenção direta das forças dominantes, fora dos autos de um processo judicial, portanto.

Hesse não desconsidera a importância de se levar em conta, no estudo do Direito Constitucional, os limites históricos de uma determinada ordenação jurídico-constitucional diante da realidade social, isto é, que nenhuma constituição jurídica poderá pretender ter eficácia ("sair do papel"), sem a presença de condições sociais, econômicas e políticas para a sua realização. Por exemplo, de que adianta o texto de uma Constituição falar em democracia e respeito a direitos fundamentais, se o país for governado por uma ditadura? Ou ainda, qual seria a efetividade de um texto constitucional que falasse em igualdade e liberdade se, sob sua regência, a Nação praticasse a escravidão? Não obstante, nossas constituições de 1967 e de 1824 nos ajudam a perceber a importância da preocupação de Hesse, o que, de algum modo, também confirma o realismo do pensamento de Lassalle.

Pois bem. De volta à provocação inicial: mas o que teria acontecido a partir da segunda metade do século XX para que hoje, no Brasil, alguém venha a dizer que é mais do que natural que a Constituição seja algo pra valer, que sua validade aliás se coloca por cima das demais leis?

Bem, antes da bonança veio a tempestade, a segunda grande guerra mundial, o horror da guerra total que não poupava civis, do holocausto judeu, da endogenia nazista, da maior violação massiva dos direitos fundamentais da pessoa humana da era moderna, tudo isso mobilizou as nações democráticas do planeta para recuperar o sonho iluminista (ameaçado) do respeito e proteção da dignidade humana. Com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo em 1945, as nações vitoriosas criaram a ONU e promulgaram uma nova declaração de direitos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que passou a ser a nova base ética de sustentação do mundo livre. Novas constituições democráticas surgiram, como a já mencionada Lei Fundamental de Bonn (1949) e a nossa Constituição de 1946, que retomava a trajetória democrática rompida por Vargas em 1937 (O caso brasileiro, porém, precisa ser examinado com mais cuidado, pois o regime de 46 seria rompido 18 anos depois com o golpe militar de 64, o que na verdade projeta para 1988 o início de nossa experiência constitucional dotada de força normativa).

Essa digressão histórica ajuda a compreender as lições do pensamento de Konrad Hesse, para quem se é verdade que uma Constituição, para ter pretensão de eficácia, precisa do apoio condicional de fatores concretos, não é menos verdade também que a Constituição, obra da razão humana, é ela própria uma força ativa dessa mesma sociedade e pode "impor tarefas".
"Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor
tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem
efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta
segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e
reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade
de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição
converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral -
particularmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem
constitucional -, não só a vontade de poder, mas a vontade de constituição."

É fundamental, portanto, segundo Hesse que haja compromisso e respeito com os valores, princípios e regras assentados na Constituição para que esta deixe de ser apenas um documento simbólico e passe a reger efetivamente os destinos da Nação. Isso passa, necessariamente, pela idéia de força normativa do texto constitucional, que somente será alcançada e garantida por um sistema de controle de constitucionalidade dos atos políticos. Quando isso ocorre numa dada sociedade organizada podemos chamá-la de Estado de Direito.

Fica então a pergunta: podemos dizer que a nossa Constituição de 1988 tem força normativa? As tarefas que ela impôs estão sendo cumpridas, pelo menos em parte? Existe uma vontade de constituição entre nós, isto é, o respeito - principalmente nos momentos de crise - à ordem constitucional?

Já se passaram vinte anos desde a entrada em vigor da nossa "lei fundamental", houve várias crises nesse período, mas todas foram resolvidas dentro dos marcos jurídicos nela fixados. Isso é um bom sinal.

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