terça-feira, 12 de agosto de 2008

Lassalle, o constitucionalismo sem Constituição

Ferdinand Lassalle é um dos autores mais importantes para o desenvolvimento da teoria constitucional. Sua obra sobre o tema é um clássico: "A Essência da Constituição" (conferência para intelectuais e operários da Prússia em 1863) é considerada precurssora de muitos debates centrais dentro do constitucionalismo moderno, especialmente no que se refere à questão da eficácia das regras de uma constituição e - o que parece dar no mesmo - à questão das limitações práticas (políticas), ou debilidade jurídica das constituições escritas para a realização de grandes promessas. Além de naturalmente suscitar os debates sobre a questão do poder constituinte.

Lassalle não acreditava na chamada "força normativa da constituição escrita". Com certo menosprezo, ele chamava a esta de "folha de papel", em oposição à verdadeira constituição de uma sociedade, para Lassalle, a soma de seus "fatores reais de poder". Ele realiza, nessa obra fortemente marcada pelo sociologismo científico de seu tempo, uma teoria constitucional sem constituição, ou melhor, uma teoria em que a constituição não tem papel central. Um paradoxo, certamente. Mas, esse pessimismo do autor que pretendia descrever a essência da constituição era coerente com sua visão de mundo - ele era um advogado socialista. E tinha muitas razões para desconfiar das virtudes supostamente universais e democráticas dos documentos constitucionais, pois viveu - lutou, foi preso... - a experiência fracassada da Constituição prussiana elaborada no contexto da "Revolução de 1848". O fracasso da rebelião popular de 48 aguçou em Lassalle a percepção de que de nada adianta um texto constitucional democrático, isonômico, quando as forças políticas que compõem a nação não estão lá muito interessadas em respeitá-lo. A Constituição jurídica é uma folha de papel. A Constituição real não é jurídica, mas política. Essa era sua convicção. Mas, para o demonstrar, Lassalle começa a perguntar.

- Qual é a verdadeira essência de uma constituição, de toda e qualquer constituição?

Para começar a responder, Lassalle rejeita os conceitos jurídicos, segundo os quais uma constituição é o documento que organiza a vida política de uma nação. Para ele isso seria apenas a forma da constituição, não a sua essência. Sugere então que se compare a Constituição (objeto desconhecido) com a Lei. E novamente pergunta:

- Qual a diferença entre uma constituição e uma lei?

Lassalle então apela para a observação empírica:

"... não protestamos quando as leis são modificadas, pois notamos, e estamos cientes disso, que é esta a missão normal e natural dos governos. Mas, quando mexem na Constituição, protestamos e gritamos: 'Deixem a Constituição!' Qual é a origem dessa diferença? Essa diferença é tão inegável que existem, até, constituições que dispõem taxativamente que a Constituição não poderá ser alterada de modo algum; noutras, consta que para reformá-la não é bastante que uma simples maioria assim o deseje, mas que será necessário obter dois terços dos votos do Parlamento (...). Todos esses fatos demonstram que no espírito unânime dos povos uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum. Uma lei fundamental."

Mas, novamente, o Lassalle crítico provoca:

- Mas o que seria essa lei fundamental, que se imponha como necessidade ativa sobre todas as outras leis?

Ou, em suas palavras já assumidamente irônicas:

"Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país - e fazendo essa pergunta os horizontes clareiam - alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis deste, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?"

E, finalmente, Lassalle responde:

"Os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal e qual elas são."

Para demonstrar a tese, Lassalle recorre a um expediente retórico muito interessante, posto que absurdo. Ele pede aos seus interlocutores, ouvintes ou leitores, que considerem a seguinte hipótese: que tenha ocorrido um grande incêndio no país e que todas as versões de todas leis escritas, inclusive a Constituição, tenham desaparecido. Poderia nesse caso o legislador fazer novas leis da maneira como desejasse? Lassalle parte então para demonstrar, um a um, a força impositiva dos denominados fatores reais de poder da sociedade, para ele, a Monarquia, a Aristocracia, a Grande Burguesia, o Mercado Financeiro e, "nos casos extremos e desesperados", também o Povo.

De acordo com essa tese, nenhuma lei poderia pretender ser efetivamente praticada, nem a própria Constituição, se seus preceitos se chocassem frontalmente com os valores e interesses daqueles fatores reais de poder numa determinada sociedade, pois a soma deles é que representa a constituição real desta mesma sociedade.

E o que dizer da relação entre esses fatores e a constituição escrita, o documento jurídico? É simples, responde Lassalle: "Juntam-se esses faores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita".

Reparem no ceticismo deste autor quanto ao idealismo jusnaturalista que marcou a primeira fase do constitucionalismo moderno. Para Lassalle não tem cabimento falar de direitos naturais, inerentes ao próprio homem como entidade abstrata. Ele tinha evidências concretas de que quando os burgueses pronunciavam a palavra direitos do homem, queria na verdade dizer, do homem burguês. Isso foi o que ocorreu, de modo seriado, com todas as revoltas populares lideradas pela burguesia, especialmente na França de 1789 e na Prússia de 1848, ou seja, o recuo, a contra-revolução, tudo em nome da estabilidade dos poderes dominantes (as oligarquias), ainda que tivessem que admitir nos consorciados.

Mas, ainda não terminou sua argumentação, ou demonstração, como decerto preferiria chamar o autor. Lassalle adverte que seria ingênuo imaginar que os textos constitucionais manifestassem expressamente a predominância do poder financeiro, ou da monarquia, ou dos industriais. Lembra que isso se define de modo mais "diplomático", isto é, definindo-se um sistema eleitoral elitista e excludente; mantendo-se o controle dos representantes eleitos por uma segunda Câmara de decisão composta por aristocratas, o Senado; mantendo-se o exército fora do alcance das regras constitucionais e à disposição do monarca; e, finalmente, contando ainda com a desorganização do poder popular, que somente em situações-limite é capaz de mostrar supremacia. Claro, este era o retrato da ordem institucional de seu próprio tempo, a Prússia da segunda metade do século XIX, em plena ressaca da "revolução burguesa".

Esse contexto, como já disse, ajuda a explicar o pessimismo, ou ceticismo de Lassalle em relação às constituições escritas, as leis fundamentais dos países modernos. Mas, não livra seu pensamento de algumas contradições finais. Ora, pergunto eu, se a constituição real de um país é a soma de seus faores reais de poder, como explicar a ocorrências das revoluções? Quer dizer então que pode haver mudanças nesses fatores reais de poder? Que tipo de ideal poderia ser capaz de mobilizar as massas contra a injustiça e a opressão a ponto de provocar transformações na sociedade? Seria mesmo menos importante para operar tais transformações a influência da "consciência coletiva" e da "cultura geral"?

A resposta de Lassalle talvez fosse a mesma da conclusão de sua obra:

"Os problemas constitucionais não são problemas de Direito, mas do Poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar."

Se a visão de Lassalle é a mais realista possível diante da experiência histórica até então vivenciada a respeito dos textos constitucionais, não custa lembrar que seu projeto era o de desvendar a essência de toda e qualquer constituição, algo que ela deveria ser para ser chamada assim. Mas, parece que ao adotar esse sociologismo, ele consegue apenas isso, falar de sua própria experiência historicamente datada. Concordo, portanto, com a análise final de Aurélio Wander Bastos, no prefácio da edição brasileira (Lumen Juris, 5ª ed., 2000), quando diz que Ferdinand Lassalle "escrevendo sobre o que é uma Constituição, ensina exatamente o que não deve ser a essência de uma Constituição."

Seu pensamento receberia a crítica e a ação criativa de outro grande jurista, Hans Kelsen, no início do século XX.

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