terça-feira, 16 de setembro de 2008

Atos Institucionais: a contra-constituição

Os militares tiveram participação decisiva em praticamente todas as fases da nossa história republicana: na proclamação (1889), na Revolução de 30, no Estado Novo (1937), na deposição de Vargas (1945), nas "crises" da República de 46, inclusive no episódio dramático do suicídio de Getúlio, em 1954. Em 1964, porém, os militares não apenas derrubaram o poder constituído, mas o ocuparam durante duas longas décadas. Período no qual o Brasil conheceu duas novas Constituições, a de 67 e a de 69. É bem verdade que em 1969 o que houve foi uma grande emenda constitucional, a de nº 1, mas que alterava de tal forma e em tamanha extensão a Constituição de 67 que passou a ser considerada uma nova Carta. Essa aparente abundância constitucional não mais esconde o fato, apontado com toda clareza por Paulo Bonavides, de "que a verdadeira Constituição daqueles anos foram os atos inastitucionais".

Invenção jurídica dos militares, os atos institucionais foram justificados pelo novo regime como emanações do Poder Constituinte. Para os generais, não se tratava de golpe, mas de Revolução. O texto do preâmbulo do AI 1, de 9 de abril de 1964, é auto-explicativo:

"A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma."

Os primeiros 4 Atos Institucionais, baixados nos dois primeiros anos do regime militar já promoveram a varredura das instituições democráticas de 46. O AI-1 autorizava a supensão de direitos políticos por 10 anos e a cassação de mandatos; o AI-2 extinguiu os partidos políticos (o que frustrou as lideranças golpistas da UDN), permitia a decretação do recesso do Congresso Nacional e a edição de decretos-leis sobre matéria de segurança nacional; o AI-3 estendeu o sistema de eleição indireta para os governadores e vice-governadores; e o AI-4 convocou o Congresso Nacional a se reunir extraordinariamente para discutir e votar um novo texto constitucional.

Não é curioso? O "Poder Constituinte" revolucionário convoca o Congresso representativo para aprovar a nova Constituição. Não parece simplesmente desnecessário? Dito de outro modo, para que uma nova Constituição votada pelo Congresso se os Atos Institucionais vinham cumprindo o mesmo papel? A resposta talvez esteja no fato de que os militares sempre tenham afirmado que o estado revolucionário seria transitório, uma "intervenção cirúrgica", para preservar a democracia liberal contra a ameaça comunista. Depois de garantida a estabilidade e eliminados os focos perigosos, o poder voltaria ao leito democrático. Infelizmente, isso não era verdade. A verdade é que nesse período recente de nossa história o Direito foi apenas um disfarce, uma fachada para o exercício arbitrário do Poder.

Mais uma vez recorro a Bonavides, que sem perder o bom humor, narrou assim os efêmeros eventos do "processo constituinte" de 67:

"O AI-4 convoca o Congresso Nacional a reunir-se extraordinariamente para discutir e votar um novo texto contitucional. Diga-se, de passagem, que o ato fixava um cronograma tão rígido que mais parecia tratar-se da abertura de uma nova estrada rodoviária ou da construção de mais uma ponte. E o calendário pré-estabelecido foi cumprido rigorosamente. O projeto enviado pelo Governo chegou ao Congresso em 12-12-66 e a Carta foi promulgada a 24-1-67, pouco mais de 40 dias depois, portanto. É patente que ela se tornou uma mera formalidade, natimorta porque submetida e anulada pelos atos. Que sentido poderia ter o capítulo "Dos Direitos e Garantias Individuais" diante do arbítrio instaurado pelos atos?"

De fato, há certas semelhanças no que diz respeito à vida curta e a falta de eficácia entre a Constituição de 67 e a de 34. A de 67 foi atropela pelo AI-5 e depois definitivamente superada pela Emenda 1 de 69, a assim chamada Constituição de 69.

A aparência de Estado de Direito era o que pretendiam os militares ao procurar revestir seus atos de força com fórmulas normativas (os atos institucionais, complementares, decretos, regulamentos...) e convenções políticas de matriz liberal, como são as constituições. Essa fachada formal de legalidade, aliás, encontra justificativas teóricas muito claras no modelo teórico juspositivista, que tem em Hans Kelsen seu defensor mais obstinado e honesto. Mas, fica a pergunta, faz sentido falar em Constituição sem liberdade?

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