sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A prova do Leo

Bom dia,

Meu nome é Ferdinand Lassalle, nasci na Prússia em 1825, sou esquentado, revoltadinho, questionador e socialista, apesar de não concordar em tudo com meu colega Karl Marx. Estou tendo um caso com a mulher proibida, por isso vou morrer amanhã num duelo com seu esposo. Eu ia escrever meu testamento nesta folha, mas os pombinhos mensageiros cruzaram o Oceano Atlântico e pousaram em minha janela, entregando-me um pergaminho que traziam amarrado à pata de um deles. Quando li, fiquei ao mesmo tempo perplexo e muito satisfeito.

Os pombos me trouxeram noticias da América do Sul, daquele grande país que há pouco "conquistou" sua independência, chamado Brasil. É um pais bem diferente de todos os que conheci. As aspas no verbo conquistar devem-se ao fato de que essa independência foi, na verdade, comprada, isso mesmo! Tomaram dinheiro emprestado da Inglaterra para pagar os colonizadores portugueses pelo reconhecimento da soberania. Prevejo que isso será ruim para aquele povo; primeiramente porque já contraíram a maior dívida externa que eu tive o (des)prazer de ter conhecimento, já que meu país ainda terá quase um século pela frente até encontrar sua própria ruína econômica, quando ele perder a segunda guerra mundial. Segundo porque o povo brasileiro nascerá e crescerá com um espírito passivo, abrindo enormes brechas para ser controlado por qualquer poder, seja ele estatuído ou mesmo constituído. Até o início do século XXI, no mínimo, o brasileiro será acomodado, já que não lutou pela sua independência. Vejam só como eu estou certo:

O rei de Portugal, que estava no Brasil, teve de voltar ao seu país para conter uma tal de Revolução Liberal do Porto, e deixou seu filho, Pedro, governando o Brasil. O sentimento antilusitano lá é forte, pelo menos; este é um dos únicos indícios de que aquele povo tem uma identidade. Mas parece que para por aí, já que dois séculos depois aquele país será reconhecido internacionalmente apenas por seu futebol, samba, mulheres e falta de seriedade institucional.

Mas estou fugindo do assunto...

Voltemos, então. Estamos na primeira metade do século XIX; as idéias iluministas do século passado já infectaram a mente do Ocidente e, obviamente, um governante não poderia mais ser tão tirano e arbitrário. É aí que entra a esperteza do Sr. D. Pedro I.
Ele pertence a uma dinastia de origem absolutista, mas vive num tempo em que o liberal-capitalismo rege as relações humanas no mundo, o que traz consigo sua ideologia característica, na verdade um instrumento velado de dominação. Pedro se declara liberal, mas, como em todo príncipe carismático, o apego pelo poder é grande. Ele deseja se manter no topo, e, para isso, ele precisa de uma ferramenta legitimadora. E qual será ela mesmo? Uma Constituição, oras! Sim, aquele documento perfumado que traduz em miúdos os desejos do príncipe. Se bem que "príncipe" já está meio fora de moda, mas não no caso do Brasil. Há outros fatores reais de poder que vigem naquele lugar. Um deles é o latifúndio e os produtores de commodities. Mas nem são tão significativos assim; o carisma de Pedro sempre rouba a cena. É, pois trata-se de um carisma com legitimidade, já que ainda há partidários portugueses no Brasil.

Veja a audácia do Sr. Pedro: "Juro defender a Constituição que está para ser feita desde que ela seja digna do Brasil e de mim!" Nessa ocasião, uma assembléia constituinte trabalhava num novo (o primeiro) documento constitucional do Brasil. Porém, os informantes de Pedro lhe contaram a tempo que nela havia cláusulas com evidente teor de redução do poder central imperial e de dar maior autonomia às províncias. O que ele faz, então? Dissolve a assembléia arbitrariamente e outorga, ele mesmo, sua Constituição. Um ato "mui democrático", eu diria.
O que seria aquela Constituição que "estava para ser feita", hein? Nada além de mais uma folha de papel enfeitado. O mundo não funciona assim, minha gente, "Constituição", que para mim é a mesma coisa que uma simples "lei", é utopia! O fator real de poder está aí, no brandir da espada do imperador! Para tocar logo a zorra de vez, veja a façanha do "Dom" Pedro: criou um quarto poder, chamado "Poder Moderador", que, naquele pergaminho, estava descrito como "o ponto de equilíbrio, a chave de abóbada dos demais poderes". Claro que rapidamente a expressão "de abóbada" foi convenientemente removida. Sério, se eu fosse Montesquieu, teria morrido de desgosto, desgosto esse maior do que o do Sr. Alberto Santos Dumont, que inventará o avião daqui a algumas décadas, ao ver sua invenção usada para lançar bombas sobre cidades e pessoas.
Portanto, "poder constituinte" é, para o Brasil da época, uma expressão de comédia. Esse poder constituinte deveria ser originário de fontes e pressões históricas, o que de fato havia naquele país, ainda que muito timidamente por causa da já citada fraca identidade daquele povo. Aquele grupo de homens que se reunira para votar e promulgar a Constituição ficou a ver navios. Eles supostamente representariam o povo brasileiro, mas esse povo, grande parte analfabeto, mal sabia exigir seus direitos.

Para não dizerem que eu não falei "das flores", vai aí um elemento que traria um mínimo de força normativa àquela Constituição: a garantia de direitos fundamentais e, ainda que de modo piadístico, uma separação de poderes. Pelo menos a folha de papel estava em consonância com o artigo XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Mas cuidado com essa história de "força normativa". Esse termo só será inventado por um colega meu que não vou chegar a ter o desprazer de conhecer. Talvez ele esteja certo, mas para o tempo dele, tanto no âmbito europeu quanto no sul-americano.

Despeço-me aqui, pois tenho que treinar para o duelo de amanhã. A gente se vê do outro lado!

Leonardo Gomes C. Pereira
Aluno da de Direito do UniCEUB

Um comentário:

Anônimo disse...

Hum... c'est intéressant, effectivement. Donc, votre D. Pedro se réclame d'avoir inventé le pouvoir moderateur? Quel menteur!
Bon duel demain, j'espère que le mari trompé t'apprenne une bonne leçon sur les "facteurs réels de pouvoir", sur la force des épées, sur l'utopie des constitutions et sur l'importance du rule of law.

Benjamin Constant