quinta-feira, 31 de julho de 2008

A pré-compreensão

Vem do campo da filosofia, mais especificamente da hermenêutica filosófica (Gadamer e Heidegger), a noção de pré-compreensão. Aplicada aos processos de interpretação (jurídica, teológica ou literária), esse conceito indica que a compreensão de um texto não começa do zero. Não se entende algo sem que aquele que procura o conhecimento deste objeto projete sobre ele alguma idéia pré-concebida sobre seu significado.

Assim, um marciano não saberia dizer o que é uma Constituição, nem poderia - até por isso, por lhe faltar uma pré-compreensão do que seja uma Constituição. Mas, um aluno de Direito, mesmo recém-chegado à Faculdade, sem ter estudado nada de Direito Constitucional, daria alguma resposta a essa questão (o ser da Constituição), com base nas informações recebidas pelo convívio social, pela cultura de seu tempo, pela informação midiática etc.

Mas, poderia este mesmo aluno confiar apenas em suas pré-compreensões compartilhadas como senso comum? Não estaria em busca de algo mais? Claro, do contrário não estaria matriculado no curso superior que lhe promete a oferta de um saber especializado, o conhecimento científico, no caso, o Direito Constitucional. É por meio de uma teoria constitucional que podemos realizar a travessia do senso comum - que se contenta com a superfície do conhecimento - para o saber racionalmente concebido e controlado, o mundo dos conceitos.

Embora já se saiba que as distorções na maneira de ver e compreender a realidade afetam tanto o senso comum, quanto o saber teórico, é certo também que enquanto o nosso senso comum nos ajuda a compreender as coisas de forma muito pragmática, de modo que possamos resolver os problemas corriqueiros de nosso cotidiano, o saber teórico, em suas bases filosóficas, produz reflexões sobre si próprio, isto é, questiona a validade de suas próprias manifestações (teses, teorias, postulados etc.), constrói uma teoria sobre o próprio ato de conhecer, uma teoria do conhecimento.

Confuso? Um pouco, mas procure entender a colocação do problema acima enunciado como um reflexão sobre o próprio processo de refletir, de compreender, uma reflexão ao quadrado. Só o pensamento filosófico é capaz desse tipo de exercício mental. O senso comum não costuma pôr em dúvida suas verdades, convicções, mesmo sem embasamento consistente, nem, na maioria das vezes, se incomoda em ignorar ou até mesmo menosprezar o saber teórico.

De volta ao Direito Constitucional, ou seja, ao saber produzido racionalmente sobre o que seja uma Constituição, esta questão aparentemente singela receberá respostas tão diversas quantas forem as "teorias da constituição" utilizadas para isso. E há muitas - examinaremos cada uma, ou as principais, em outra aula.

Todas, no entanto, devem responder às mesmas perguntas, por exemplo:

- Que tarefas ou funções devem ser atribuídas à Constituição de um determinado país?
- Que temas devem ter status constitucional?
- A Constituição deve se limitar a distribuir as competências e atribuições dos diversos agentes do Estado? Que Estado?
- Ou, pelo contrário, pode a Constituição avançar e pretender "planejar o futuro", fixando diretrizes materiais para a transformação e/ou organização de uma determinada Sociedade histórica? Uma constituição que firme compromissos, que ofereça promessas?
-"enfim, deve a Constituição simplesmente sancionar o existente ou servir de instrumento de ordenação, conformação e transformação da realidade política e social?" , para usar as palavras de Inocêncio Coelho (Curso de Direito Constitucional, 2007, p. 6)

Outras perguntas ainda poderiam ser feitas. Haverá Constituição verdadeira sem um regime democrático que lhe dê sustentação? É possível falar-se de Constituição em sociedades antigas, pré-modernas? A Constituição retira de onde sua autoridade?

O que é, afinal, a Constituição?

Na próxima aula,vamos descobrir que as respostas são muitas, mas, por ora, vamos começar investigando nossas pré-compreensões.

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