por Clèmerson Merlin Clève
A Constituição completa 20 anos. Não é pouca coisa para um país com uma história republicana conturbada. A efeméride reclama comemoração, sem dúvida. E reflexão apurada. Capaz de inventariar o que deu certo, apontar o que não foi feito, embora prometido, e exigir a correção daquilo que não passou no teste da adequação. A Constituição é norma, mas é também vida, experiência tocada pela dinâmica política.
Comecemos por aquilo que deu certo. Temos, hoje, uma nova sociedade: mais plural, mais aberta, menos intolerante, mais inclusiva, embora ainda profundamente desigual. A Constituição pode ser compreendida como uma resposta a um passado de arbítrio (regime militar) e um projeto normativo para a construção de uma sociedade emancipada composta por cidadãos livres e iguais.
A Constituição foi generosa com os direitos fundamentais, apontando para a construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, erigido a partir de certos fundamentos e determinados princípios e objetivos. Queremos uma sociedade livre, justa e solidária, fincada sobre a idéia de dignidade da pessoa humana. Queremos algo diferente daquilo que vemos todos os dias nas ruas da cidade. A Constituição, como sabemos, não é capaz de, por si só, alterar a dura realidade de um país que quer superar os seus traumas, os seus problemas, os seus déficits de justiça.
Mas apresenta de qualquer forma uma moldura institucional, um quadro de valores e princípios, um universo de direitos capazes de favorecer a emergência da transformação necessária. Daí a razão pela qual podemos falar, hoje, de um patriotismo constitucional. Os brasileiros, compondo uma comunidade de destino, se reconhecem como brasileiros não apenas em função de sua história comum, de sua língua, de sua cultura, arte, gastronomia ou futebol, mas também porque compartilham determinados princípios, valores, direitos e objetivos.
Quer-se uma sociedade emancipada e aberta formada por cidadãos livres (as idéias de autonomia pública e privada) e iguais (as idéias de reconhecimento, respeito, alteridade e dignidade humana), tudo para favorecer a emergência de um país mais inclusivo e igualitário, mais democrático, mais respeitoso com as diferenças, mas igualmente mais próspero e mais moderno.
Nesse campo, há ainda tudo por fazer. Mas não podemos negar a bondade do quadro normativo e institucional. A Constituição é aliada nessa tarefa, e não inimiga. Vinte anos depois da promulgação da Constituição, entretanto, nos deparamos ainda com uma enorme distância entre a normatividade e a realidade constitucionais, entre as promessas do Constituinte e a dureza da vida cotidiana.
A tarefa a cumprir nos próximos anos envolve superação progressiva da distância entre a idealidade e a concretude, a promessa e a realização, a norma e a experiência vital. Daí a necessidade de políticas públicas, da ação legislativa do Congresso, da atuação do Executivo como amigo da Constituição e das demandas de grande parcela da população que, com a bandeira da Constituição, e não vociferando contra ela, pretende superar sua triste condição, ainda contaminada pela precariedade, pela dependência e pela insuficiência. É nesse contexto que muitas vezes se compreende (mas não se justifica) a impaciência do Judiciário com a omissão desidiosa do Executivo ou do Legislativo. Ou o atuar transgressor, no contexto institucional, do Ministério Público ou da Polícia Federal.
Falta muito a fazer, as melancias (órgãos constitucionais e movimentos sociais) ainda procuram o seu lugar na carroça que sacoleja durante o transitar. Vinte anos são um tempo considerável quando se fala de nossa história constitucional. Mas, cuida-se de um tempo ainda curto para as acomodações que só o tempo será capaz de proporcionar.
Por fim, cumpre dizer algo sobre aquilo que não passou no teste da experimentação. Nos últimos anos, a Constituição tem sofrido muitas reformas. São mais de 60 emendas à Constituição, quando computadas também aquelas decorrentes do processo de revisão de l993. Para se ter uma idéia do que isso significa, basta dizer que a bicentenária Constituição americana foi emendada apenas vinte e sete vezes. Mas aqui é preciso lembrar que, primeiro, cada país constrói a sua própria história constitucional, sendo certo, ademais, que boa parte das Emendas são explicáveis em decorrência das características de nossa Constituição.
Trata-se, como sabemos, de um texto complexo, analítico, expansivo, detalhista que, quando superado pelos fatos, reclama aqui e acolá atualização. Mas a reforma constante pode comprometer a sua força normativa, de modo que um equilíbrio entre permanência e mudança é indispensável para a manutenção da legitimidade e normatividade constitucionais. O Congresso Nacional, neste particular, tem mais errado do que acertado. Nem sempre tem agido com parcimônia, nem com apuro técnico. Muitas reformas necessárias foram feitas, é verdade. Porém, às vezes de modo atabalhoado, sendo certo que há algumas criticáveis, desastrosas mesmo.
O Congresso cuida freqüentemente do que é contingente, deixando de lado o que é estrutural, permanente, aquilo que é próprio do domínio constitucional. Sem embargo disso, duas reformas são inevitáveis nos próximos anos. Uma reforma política, capaz de robustecer a autenticidade da representação, permitindo, inclusive, a definição de uma agenda, pelo poderes constituídos, que seja verdadeiramente expressão dos interesses do país (a representação, hoje, particularmente no Congresso, não espelha com fidelidade a complexidade do país, em função de interesses sobre-representados comprimindo muitos sub-representados) e outra tributária (atingindo, eventualmente, o campo fiscal), capaz de racionalizar, simplificar e distribuir de modo mais justo a carga tributária. Ambas, embora muito comentadas, não estão, lamentavelmente, no horizonte político de curto prazo.
A primeira, porque pode contrariar a vontade de poder hoje hegemônica, embora de modo sempre precário, e a segunda porque exige uma sinceridade governamental e um respeito pelo cidadão que ainda, apesar de todos os avanços, não conhecemos no país. Nossa administração pública continua sendo autoritária, auto-referente e arrogante, embora agora fale em nome da justiça social. A reforma tributária que ora se discute no Congresso Nacional, violadora do pacto federativo, não é, absolutamente, a reforma que queremos, nem aquela que necessitamos. O lado bom de tudo isso, é que, apesar de tudo, temos, hoje, a possibilidade de apontar nossas preocupações, manifestar nossas desesperanças e lutar abertamente para a construção de um mundo melhor. Se nem tudo são flores, plantamos todos os dias as mudas que desenham e redesenham nosso jardim da democracia. E isso precisa ser comemorado. Com todos os fogos.
Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2008
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
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